Transferência da gestão de escolas públicas da rede estadual à Polícia Militar no Amazonas: pontos para o debate

por Nádia Maciel Falcão

A adoção de rotinas e procedimentos que remetem ao cotidiano de instituições militares em escolas públicas divide opiniões de pais e especialistas da área da educação e não é em si um tema novo no debate da educação pública brasileira. O que tem despertado a atenção, contudo, é a intensificação do movimento de transferência de escolas públicas para a gestão de instituições militares, que vem se formalizando por diferentes mecanismos em vários estados da federação, dentre os quais o estado do Amazonas.

Na medida da provocação da realidade, ensaiam-se análises que com seu teor exploratório expõem configurações locais desse processo e apontam para a necessidade de uma reflexão em conjunto sobre os pressupostos e as bases que estão por trás de tal fenômeno. Ao destacar aspectos da experiência do estado do Amazonas no que diz respeito à entrega de escolas públicas para a gestão da Polícia Militar do Amazonas, este texto se inclui entre esses ensaios e procura indicar alguns pontos importantes para o debate em âmbito local e nacional, além de sinalizar para a necessidade de aprofundamento do conhecimento sobre o tema por meio da pesquisa científica.

A fim de caracterizar brevemente como se configura esta questão no estado do Amazonas, vale dizer que a rede estadual de ensino conta hoje com 4 unidades que funcionam sob a gestão da Polícia Militar, todas localizadas na capital Manaus. Interessante dizer também que a primeira escola assumida pela PM no Estado e que se encontra ainda em funcionamento data de 1994 e as demais foram transformadas em colégios militares entre os anos de 2010 e 2012, evidenciando assim uma perspectiva recente de expansão do modelo. Observa-se também que as referidas instituições estão distribuídas nas quatro zonas da Cidade: norte, sul, leste e oeste.

Assim como nos demais estados nos quais têm se firmado parcerias entre as secretarias de educação e as polícias militares, no Amazonas a disciplina, o combate à ação do tráfico no ambiente escolar e a melhoria do desempenho das escolas nos mecanismos de avaliação externa são os principais pontos de sustentação da proposta, como também se tornam os grandes atrativos aos pais que anseiam por escolas mais seguras e melhor equipadas para seus filhos e, além disso, possuem em geral, compreensões acerca do que seja ensino de qualidade muito sensíveis às políticas que conferem índices e/ou produzem ranqueamentos institucionais.

Em pesquisa desenvolvida com jovens estudantes do ensino médio em uma das escolas que passaram para a gestão da PM no ano de 2012, foi possível identificar dois modos distintos de rebatimento da mudança na vida dos jovens. A jovem Daniele falou com entusiasmo sobre a implantação das rotinas militares na escola e destacou que com o forte regime disciplinar, permaneceram na escola aqueles estudantes que nas palavras da jovem “realmente queriam estudar”. Daniele comentou também sobre o sistema de atribuição de comendas aos estudantes com melhor desempenho, tendo sido ela mesma agraciada com o título de major, por ter sido a melhor aluna da escola.

No polo oposto temos a experiência do jovem Robson, o qual relatou que a maior rigidez nos horários de entrada e saída tornou-se incompatível com sua desregulada jornada de trabalho, de modo que, não dispondo de condições para deixar o trabalho, terminou por abandonar a escola naquele ano de 2012, retornando no ano seguinte em outra instituição.

Para além do que aqui está destacando, os relatos dos jovens estão plenos de elementos que demonstram que a entrega da escola para a gestão militar sanou antigos problemas vividos pela escola, tais como a falta de professores, os frequentes furtos e roubos dentro da instituição, a falta de manutenção de equipamentos e mobiliários, a deficiente limpeza e organização de diferentes ambientes, mas os relatos também deixam claro o traço excludente do processo, na medida em que a mudança, ocorrida em plena vigência do ano letivo, deixou de pautar os problemas de adaptação dos estudantes à nova rotina, recaindo sobre os mesmos a decisão por permanecer ou abandonar a escola, ou ainda, nos casos não manifestos pelos estudantes, a falta de adaptação ocasionou os afastamentos compulsórios via transferência escolar.

Além disso, o acesso às escolas estaduais assumidas pela Polícia Militar é feito por meio de processo seletivo e há especificidades no regime de administração que permitem a cobrança de taxas e fardamento diferenciado das demais escolas da rede. Complementando o fardamento, a militarização exige uma apresentação pessoal peculiar, que impede o uso de determinados acessórios, cortes e penteados de cabelo, dentre outros elementos visuais, considerados incompatíveis com a rotina militar.

Destaca-se ainda, que a forma de provimento do cargo de gestor escolar adotada pela rede estadual de ensino do Amazonas é a indicação, sendo este um cargo de confiança. Com isso, a gestão das escolas assumidas pela PM no Amazonas pode ser designada a um membro da referida corporação militar.

Diante dessa experiência brevemente explorada, as questões que se colocam ao debate são: Quando se defende a transferência da gestão de escolas públicas para instituições militares em nome da melhoria da qualidade do ensino, de qual conceito de qualidade se está tratando? Por que continuar apostando em modelos que favorecem a criação de escolas de excelência quando a igualdade de condições de acesso e permanência, a gratuidade do ensino público e a garantia de padrões de qualidade são princípios constitucionais consagrados? Acaso fossem asseguradas boas condições de funcionamento a todas as instituições públicas de ensino os resultados não se evidenciariam nos índices e, melhor ainda, não repercutiriam de modo mais ampliado na vida dos sujeitos que passam pela escola? E, por fim, indaga-se: como garantir o princípio constitucional da gestão democrática do ensino público em instituições cujas relações entre os segmentos são fortemente marcadas pela hierarquização?

O debate se anuncia urgente, sobretudo porque não se trata de uma questão localizada, mas de um modelo que avança em vários estados brasileiros, cujas especificidades é preciso apurar. Diante do apelo popular produzido pelos resultados imediatos alcançados pelas escolas militarizadas, cabe à área da educação aprofundar análises e reforçar junto à sociedade visões mais abrangentes e menos imediatistas do que venha a ser uma escola pública, democrática e de qualidade.

Nádia

  • Nádia Maciel Falcão é Doutora em Educação; Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Amazonas.