Novo Fundeb | entrevista com Denise Carreira (GT 05 e Ação Educativa)

 

O novo Fundeb, aprovado na Câmara e agora seguindo para tramitação no Senado, é fruto de quase duas décadas de proposições e mobilizações de entidades, pesquisadores e ativistas em defesa da Educação pública. Denise Carreira (USP) participou ativamente da proposta do Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi) quando foi coodenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (2003-2006). Em entrevista ao portal da ANPEd, a pesquisadora do GT 05 (Estado e Política Eduacional) e hoje coordenadora institucional do Ação Educativa relembra a importância do movimento Fundeb pra Valer, analisa conquistas do texto atual, pontos da regulamentação e desafios para que o Fundo alcance uma perspectiva afirmativa e de controle social.

O projeto do Novo Fundeb foi aprovado em duas votações na Câmara dos Deputados. No entanto, a discussão sobre o Fundo, incluindo o mecanismo de CAQ, vem ao menos desde 2002. Você teve envolvimento neste processo, junto à Campanha Nacional pelo Direito à Educação naquele momento. Conte um pouco pra gente sobre esse contexto.

Coordenei a Campanha Nacional pelo Direito à Educação entre 2003 e 2006, antes de Daniel Cara, que exerceu bravamente a coordenação geral da Campanha até este ano, função assumida recentemente por Andressa Pellanda.  Foram quatro anos extremamente intensos de muitas mobilizações, pesquisas, ações no sistema de justiça e incidência política: pela derrubada dos vetos do presidente FHC ao PNE 2001-2010; pelo pagamento da dívida do governo federal para com o Fundef; pela convocatória da Conferência Nacional de Educação. Como fruto de um processo que durou quatro anos, construímos a proposta de Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi) em parceria com o professor José Marcelino Rezende Pinto e com outras pesquisadoras, pesquisadores e ativistas de várias partes do país; desenvolvemos uma articulação no continente que culminou no surgimento da Campanha Latino-americana pelo Direito à Educação e criamos o movimento Fundeb pra Valer, uma ampla coalizão de movimentos sociais, entidades e setores da sociedade para além da educação. 

Mesmo durante o governo Lula, que possibilitou efetivamente avanços importantes no enfrentamento das profundas desigualdades do país, a disputa em várias dessas frentes foi imensa, em especial, com setores do MEC e com a área econômica. A luta pelo CAQ e pela maior participação da União no financiamento da educação provocou conflitos acirrados na tramitação do Fundeb. É importante registrar que esses conflitos voltaram a se intensificar a partir de 2010, no governo Dilma, com a atuação do MEC explicitamente contra o parecer 08/2010 do Conselho Nacional de Educação, que estabelecia normas para a concretização do CAQi e do CAQ, com base na proposta da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Perdemos ali uma grande oportunidade de avançar. Em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, o parecer 08/2010 foi revogado pelo CNE em uma manobra absurda. 

Quais foram as frentes estratégicas de ação do Fundeb pra Valer?

Uma das nossas principais conquistas do movimento Fundeb pra Valer foi a incorporação da educação infantil de 0 a 3 anos no Fundo em 2005, ocorrida na etapa de tramitação na Câmara Federal, algo que na época o Ministério da Educação dizia que jamais ocorreria porque a área econômica não permitiria. Para isso, fortalecemos e ampliamos o comitê diretivo e os nossos comitês estaduais da Campanha; fizemos uma disputa qualificada na opinião pública sempre com base em dados, pesquisas e propostas; fortalecemos o diálogo com parlamentares de forma suprapartidária e investimos fortemente na dimensão simbólica e lúdica da ação política que comunicasse a nossa mensagem para mais gente, de forma a ampliar a compreensão do sentido político e prático das questões complexas que manejávamos no debate de financiamento.  As cirandas (danças) nas praças de várias capitais; as músicas; a logomarca do Fundeb pra Valer (uma bebê negra com um chocalho exigindo o seu direito) e o slogan ("direito à educação começa no berço e é pra toda a vida"); as oficinas sobre o Fundeb e o CAQ em vários lugares do país; a participação de movimentos de mulheres, de crianças e adolescentes e de mães e bebês com carrinhos no Congresso Nacional; as Fraldas Pintadas impulsionadas pelo Cedeca Ceará e MIEIB (Movimento Interfórum de Educação Infantil) e tantas outras ações coletivas contribuíram para democratizar o debate e para o avanço da pressão política. 

Todo o trabalho da Campanha – como esforço de articulação entre entidades sindicais, gestores educacionais, conselhos de educação, movimentos sociais, ONGs do campo dos direitos e instituições acadêmicas - sempre se reconheceu como parte de uma luta histórica que vem de muito longe pelo direito à educação no país promovida por coletivos, entidades e movimentos sociais (de educadoras/es, trabalhadoras/es, negros, indígenas, mulheres, crianças e adolescentes, pessoas com deficiência etc) e por pesquisadores progressistas, da qual o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública tem lugar de destaque.  

O projeto 15/2015, de autoria da professora Dorinha, contou com colaboração de um amplo espectro político, a despeito da tentativa de desfiguração pelo governo na reta final da votação. Qual a importância de se manterem os pontos centrais do projeto? O que você destaca nesse sentido e qual o desafio para as próximas etapas da tramitação no Senado e da regulamentação?

Sem dúvida, foi uma grande vitória do nosso campo em um contexto extremamente adverso, marcado pelo “austericídio” imposto pela política econômica do governo federal, pelo autoritarismo extremo, por um processo de desregulamentação acelerada em diversas áreas, por inúmeros ataques aos direitos humanos, principalmente contra a população pobre, negra e indígena, e por uma imensa destruição ambiental. 

Apesar de não contemplar tudo aquilo que almejávamos para o novo Fundeb - e que a Campanha Nacional pelo Direito à Educação defendeu arduamente -, a proposta aprovada pela Câmara representa um avanço muito importante, ao tornar o novo Fundo permanente, ao aumentar a contrapartida da União dos atuais 10% para 23% em 2026, ao prever o modelo híbrido, ao aumentar o percentual destinado à valorização das profissionais de educação de 60% para 70% e ao constitucionalizar o Custo Aluno Qualidade, uma proposta que nasce da sociedade civil brasileira. 

No Senado, precisamos estar extremamente atentas para que não ocorra retrocesso. Há um quadro de muita instabilidade política. Não podemos “baixar a guarda” diante da área econômica do governo, dos setores privatistas e daqueles que atuam desde sempre contra o CAQ. Nossa proposta é extremamente consistente: o CAQ é um mecanismo fundamental para a melhoria do financiamento educacional, da gestão democrática e do controle social comprometido com a garantia do direito humano à educação de qualidade por meio de políticas de Estado.

Na etapa da regulamentação, uma das principais preocupações se refere ao percentual de 2,5% da contrapartida da União destinado a apoiar as redes de ensino com melhor desempenho. Proposta extremamente temerária, que responde a demandas de determinados setores do campo empresarial e que precisa ser cuidadosamente delimitada para que não contribua para aprofundar as abissais desigualdades educacionais no país. Na mesma linha, é necessária muita atenção à previsão da PEC de que os estados aprovem legislação para distribuir entre os municípios parte dos recursos do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) com base em indicadores de melhoria nos resultados de aprendizagem e de aumento da equidade.

Ao mesmo tempo, neste ponto do texto extremamente preocupante do uso da avaliação para distribuição de recursos reside a possibilidade de avançarmos na regulamentação do SINAEB – Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica e retomarmos a proposta prevista na portaria 369/2016, revogada pelo governo Temer. Tal portaria instituía o SINAEB, concretizando o previsto no artigo 11 do Plano Nacional de Educação, com base em um desenho construído pela equipe do INEP em diálogo com várias organizações e especialistas, processo do qual participei intensamente representando a Ação Educativa.  

A regulamentação do novo Fundeb deve possibilitar que possamos também: fixar um conjunto de insumos que se tornem parâmetros do Custo Aluno Qualidade; aprimorar o controle social do Fundeb; e avançar em mecanismos que garantam melhores condições de financiamento em uma perspectiva afirmativa e equalizadora para as modalidades de ensino e para os territórios caracterizados por alta vulnerabilidade, constituídos majoritariamente por população negra. Em outubro do ano passado, por meio das entidades que compõem o Capítulo Brasil do Fundo Malala, apresentamos ao Senado Federal quatro propostas para a regulamentação do Novo Fundeb visando a garantia do direito à educação indígena, quilombola e o enfrentamento do racismo por meio do financiamento. O estudo foi elaborado pelos pesquisadores Salomão Ximenes, Elizabeth Ramos e por mim, e retoma as propostas do Adicional CAQi (recursos a mais para territórios com os piores indicadores sociais) e do CAQ Modalidade de Ensino, abordadas em nosso primeiro livro sobre o Custo Aluno Qualidade Inicial, lançado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação em 2007.  

Como você vê o papel de entidades e pesquisadores da Educação, historicamente e no presente, para o debate, apoio e formulação de políticas públicas para educação? E igualmente contra retrocessos e políticas conservadoras/reacionárias, tendo em vista os tempos atuais.

O papel das entidades e das pesquisadoras e pesquisadores de educação sempre foi extremamente importante na luta pelo direito à educação, principalmente daquelas e daqueles que se reconhecem como pesquisadores-ativistas. Daqueles que correm risco e se colocam o desafio de cruzar fronteiras, tensionar cânones e culturas hierárquicas e colonizadoras, questionar a branquitude que organiza a universidade brasileira, produzir novas perguntas sem a pretensão de respostas conclusivas e se colocar a serviço da construção de um conhecimento crítico, criativo, sensível, pungente, comprometido com a superação das desigualdades brasileiras e com um projeto radical de justiça social e ambiental. Pesquisadoras e pesquisadores que reconhecem a legitimidade e a provocação contida na produção de conhecimentos construída pelos movimentos sociais, coletivos e organizações da sociedade e que buscam articular essa produção com a desenvolvida por universidades e por outras instituições de pesquisa acadêmica. 

A ANPEd nasce da aposta nessa ousadia. Diversos são suas pesquisadoras e pesquisadores que cruzam as fronteiras, correm riscos e tecem possibilidades na construção do conhecimento e na ação política. Assim como muitas outras frentes, a construção do CAQ e a luta por um financiamento para a garantia do direito humano à educação de qualidade se alimentaram e se alimentam profundamente da pesquisa educacional das últimas décadas, presente na ANPEd e na Fineduca. A pesquisa educacional desenvolvida nas universidades, organizações da sociedade civil e demais instituições de pesquisa terá um papel extremamente importante para que o novo Fundeb seja aprimorado de forma contínua e permanente, dando resposta ao desafio maior de enfrentamento das desigualdades educacionais do país.

 

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