Márcia Angela Aguiar - depoimento sobre nomeação revogada de conselheiros do CNE


                                           Márcia Angela Aguiar

Professora Titular do Centro de Educação da UFPE
Ex-Presidenta da ANPEd
Conselheira da Câmara de Educação Superior do CNE

Qual o papel dos conselheiros do CNE?

Para situar o papel dos conselheiros faz-se necessária uma breve menção ao papel do Conselho na estrutura educacional brasileira. Destaca-se que o atual CNE é produto de uma longa história que teve início nos idos de 1842, quando surge, na Bahia, a primeira tentativa de criação de um conselho de educação na administração pública, somente materializada em 1911 com a criação do Conselho Geral da Instrução Pública (Decreto n. 8.659, de 05/04/1911). Posteriormente, surgiram o Conselho Nacional de Ensino (Decreto nº 16.782-A, de 13/01/1925), o Conselho Nacional de Educação (Decreto nº 19.850, de 11/04/1931), o Conselho Federal de Educação e os Conselhos Estaduais de Educação (Lei nº 4.024, de 20/12/1961), os Conselhos Municipais de Educação (Lei nº 5692, de 11/08/1971) e, novamente, Conselho Nacional de Educação (MP nº 661, de 18/10/1994, convertida na Lei nº 9.131/1995) (Vide site MEC/CNE).

O atual Conselho Nacional de Educação - CNE, órgão colegiado integrante do Ministério da Educação, foi instituído pela Lei nº 9.131, de 25/11/1995, com a finalidade de colaborar na formulação da Política Nacional de Educação e exercer atribuições normativas, deliberativas e de assessoramento ao Ministro da Educação. Estruturado em duas Câmaras – Educação Básica e Educação Superior -, cada uma delas constituída por 12 conselheiros, sendo membros natos, na Câmara de Educação Básica, o Secretário de Educação Básica e na Câmara da Educação Superior, o Secretário de Educação Superior, ambos do MEC e nomeados pelo Presidente da República. O CNE exerce suas atribuições mediante a emissão de pareceres, diretrizes e tomada de decisões privativa e autonomamente sobre os assuntos que lhe são pertinentes, cabendo, no caso de decisões das Câmaras, recurso ao Conselho Pleno.

A Lei 9131/1995 definiu que a escolha e a nomeação dos conselheiros serão feitas pelo Presidente da República, sendo pelo menos a metade, dentre os indicados em listas elaboradas para cada Câmara, mediante consulta às entidades representativas da sociedade civil, segundo as áreas específicas de atuação. A Lei estabelece, ainda, que para a Câmara de Educação Superior a consulta envolverá indicações formuladas por entidades nacionais, públicas e particulares, que congreguem os reitores de universidades, diretores de instituições isoladas, os docentes, os estudantes e os segmentos representativos da comunidade científica. Os conselheiros têm mandatos de quatro anos, permitida uma recondução para o período imediatamente subsequente, havendo renovação de metade das Câmaras a cada dois anos. Cada câmara tem seu presidente escolhido por seus pares, vedada a escolha do membro nato, para mandato de um ano, permitida uma única reeleição imediata.

As atribuições do CNE já sofreram várias alterações após a promulgação da Lei 9131/1995, mas o caput do artigo 7º evidencia a relevância do papel do Conselho ao estabelecer que o Conselho “terá atribuições normativas, deliberativas e de assessoramento ao Ministro da Educação, de forma a assegurar a participação da sociedade no aperfeiçoamento da educação nacional”. O parágrafo 1º deste artigo e seus incisos estabelecem atribuições complementares: subsidiar a elaboração e acompanhar a execução do PNE; manifestar-se sobre questões que abranjam mais de um nível ou modalidade de ensino; assessorar o MEC no diagnóstico dos problemas e deliberar sobre medidas para aperfeiçoar os sistemas de ensino; emitir parecer sobre assuntos da área educacional; manter intercâmbio com os sistemas de Ensino dos estados e do Distrito Federal; analisar e emitir parecer sobre questões relativas à aplicação da legislação educacional; e, elaborar o seu regimento, a ser aprovado pelo Ministro da Educação.

Esse elenco de atribuições do Conselho confirma a responsabilidade que têm os conselheiros no exercício de suas funções, sobretudo, na definição de normativas para o sistema educacional do país, com base em amplas discussões sobre o assunto. Além do amplo conhecimento do campo da Educação, espera-se que os conselheiros estejam abertos ao diálogo construindo respostas para as questões educacionais que levem em consideração a complexidade da sociedade brasileira.

Como a senhora, como conselheira, recebeu a informação de revogação de conselheiros do CNE?

Recebi com surpresa a informação a respeito da publicação no Diário Oficial da União de 28/06/2016, do Decreto do Vice-Presidente da República, no cargo de Presidente interino.

Superada a surpresa inicial, procurei entender o sentido dessa medida, à luz das injunções políticas atuais. E, chego à conclusão  de que esse ato político que reverberou no seio do CNE, aponta para duas direções. De um lado, evidenciou-se o desrespeito às regras democraticamente construídas. De outro lado, a fragilidade da instituição que se pretende ser um órgão de Estado, pois o fato de a escolha de cada um dos conselheiros/as e consequente composição do CNE depender da expressa vontade do governante de plantão, mesmo considerando-se a existência de listas com indicações, evidencia o quanto ainda falta à área de Educação avançar para a materialização do Conselho como um órgão de Estado e não de governo.

Essa situação mostra o quanto é importante e urgente que as representações da sociedade civil busquem formas de fortalecer o Conselho Nacional de Educação como um órgão de Estado que, no desempenho de suas atribuições legais e políticas,  responda à sociedade brasileira, não ficando vulnerável às ingerências (justificadas por interpretações da legislação vigente) dos sucessivos governos. 

A seu ver, o fato de alguns conselheiros serem mantidos e outros não (além de outros recolocados) gera que tipo de arranjo para a composição do conselho?

O Conselho, como qualquer outra instância de uma área social, reflete a história da própria área e os conflitos da sociedade vigentes em determinadas conjunturas, bem como a organização dos grupos sociais na busca de hegemonia. Portanto, não vemos o Conselho como um campo neutro, pairando acima da sociedade,  onde, supostamente, os/as conselheiros/as tomariam decisões de forma asséptica.

Ao contrário, os conselheiros, dada a natureza das suas atribuições, estão inseridos em um dos espaços de debate, construção  e acompanhamento das políticas educacionais que refletem a dinâmica social, desde que são indicados pela sociedade civil e pela sociedade política, sendo que o governo, de acordo com a legislação atual, tem a primazia das escolhas, tendo em vista os recursos de poder que dispõe para efetivá-las.

O debate no Conselho envolve compreensões e modos de interpretação da realidade social e das questões educacionais por parte dos seus atores cuja tradução nas normativas e orientações direcionadas ao sistema educacional, ou na busca de respostas para situações problemáticas refletem sempre posicionamentos políticos que conseguem se impor em determinadas circunstâncias.

Portanto, a depender da sua composição, da construção de eventuais   consensos internos, da permeabilidade aos interesses em disputa no campo educacional,  o  Conselho tomará ou não determinadas iniciativas ou decisões atinentes às ações de instâncias de governo e dos sistemas  de ensino no âmbito da sua esfera de atuação. Ao fazê-lo, certamente estará reforçando posições ou associando-se a determinadas visões sobre  a realidade educacional. Nos temas polêmicos ou que geram tensões como aqueles relacionados aos processos regulatórios ou à relação público-privado, a composição do Conselho certamente será um dos fatores  que influenciará as decisões a serem tomadas.

De que forma essa decisão interfere ou não em sua visão sobre o governo interino?

Por considerar que projeto educativo espelha projeto de sociedade, entendo que o ato decisório de revogação do mencionado decreto, mais do que um ato administrativo, revela per se a perspectiva político-ideológica de setores representados pelo governo interino e que buscam afirmar determinados projetos político-sociais. Certamente as implicações desse ato extrapolam os limites da burocracia governamental e provavelmente irão reverberar nas grandes questões que tensionam o debate educacional atual, tais como: currículo nacional comum, sistema nacional de educação, qualidade da educação básica, formação crítica e formação de mão de obra, gestão democrática e gestão de resultados, público e privado na educação, reforma do ensino médio e profissional, expansão da educação superior, formação e valorização dos profissionais da educação básica, avaliação educacional. Afinal, os conselheiros, por ofício, estarão debatendo e deliberando sobre aspectos atinentes aos temas citados que se vinculam a paradigmas que norteiam a ação governamental seja em prol de uma educação pública, gratuita, laica e de qualidade social ou de uma educação pautada pelos valores do mercado. Neste sentido, o CNE é palco de disputas entre interesses de diversos grupos sociais e o que predomina, conjunturalmente, resulta sempre desses embates. Nesse contexto, como conselheira indicada por entidades científicas comprometidas com a qualidade social e a democratização da educação, estamos ao lado das forças sociais que defendem os interesses da educação pública no país como um direito social a ser garantido pelo Estado conforme reza a Constituição Cidadã de 1988.