As Leis da Mordaça na Educação Infantil | Entrevista com Raquel Salgado (UFMT)

 

 

Entrevista com Raquel Gonçalves Salgado, Professora Associada da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Câmpus de Rondonópolis. Atua no Programa de Pós-graduação em Educação da UFMT/Rondonópolis. É, atualmente, vice-coordenadora do GT-7 da ANPEd.  A entrevista integra reportagem especial da ANPEd sobre a Educação Infantil.

 

 

 

O Programa Escola Sem Partido prevê uma suposta neutralidade política, quais os riscos disso?

Os riscos de uma proposta educacional, que tem uma suposta neutralidade política como o seu carro-chefe, são terríveis. O absurdo está exatamente naquilo que ela esconde, disfarça e ilude. O Programa Escola Sem Partido, ao enaltecer a sua “neutralidade”, reitera a ideologia que o atravessa, a qual, mesmo que esteja sob a máscara da suposta assepsia política, é o discurso de uma moralidade que tem estreitos compromissos com a preservação e a perpetuação de uma ordem social, econômica e política excludente, cujo funcionamento é perverso porque só faz sentido negando aquilo que, de fato, o constitui. Desse modo, o Programa Escola Sem Partido é fruto de um trabalho discursivo para a montagem de uma farsa na educação, que se sustenta nos argumentos da “neutralidade política” para cercear o pensamento crítico e criativo, as ideias e os corpos de crianças e jovens no nosso país.

Atualmente a formação política no Brasil é precária. É possível esse projeto comprometer ainda mais o envolvimento dos cidadãos na política? De que forma?

Como esse projeto de lei afeta o ensino em sala de aula?

Quando o Escola Sem Partido proclama uma educação não-partidária e, portanto, apolítica, comete outro grave equívoco ao restringir a dimensão política à participação partidária, que é apenas uma das experiências políticas possíveis. Seus idealizadores e defensores omitem, intencionalmente, o fato de que o exercício da cidadania não acontece fora da vida política e, por isso, não há como assumir-se como cidadão sem viver e engajar-se em ações políticas. Isto vale para todas as pessoas, sem exceção, em todos os momentos de sua vida: crianças, jovens e velhos. Não tenho dúvidas de que um dos papéis da educação escolar seja a formação política para a cidadania, desde a Educação Infantil, posto que não há conhecimento que não tenha inserção na vida social e não nos permita, quando, de fato, é assimilado, modificar nossas visões de mundo e nossas ações nas relações com as outras pessoas. A educação escolar precisa trabalhar esses aspectos do conhecimento em todas as suas etapas e é isto que o Programa Escola Sem Partido busca extirpar ao arrancá-lo da vida social e, portanto, apagar a sua dimensão política.

As consequências desse projeto são nefastas para a formação política e a cidadania das novas gerações, posto que, de acordo com os princípios educativos que o regem, as pessoas são vistas e devem ser tratadas como acumuladoras de conteúdos esvaziados de história. Nessa lógica, da mesma forma que os conceitos escolares se petrificam porque perdem a sua íntima relação com a cultura e a vida social e política, os/as educandos/as são desumanizados/as porque deles/as precisam ser arrancadas a crítica e a criatividade que impulsionam a ação transformadora no mundo, que é um acontecimento político e, como Paulo Freire já afirmava, uma das mais importantes tarefas da educação.        

O que representa para o debate de gênero e raça esse projeto?

O que representa o conceito de “educação nacional” em um país com dimensões continentais?

O Programa Escola Sem Partido representa um retrocesso sem precedentes para o debate de gênero e raça, que tem ganhado fôlego em nossa sociedade. Recentemente, “gênero” tem se tornado uma palavra polêmica, controversa, conflituosa; uma palavra que tem sido profanada. Alvo dos mais intensos ataques de grupos religiosos e políticos – dentre estes estão os defensores do Escola Sem Partido –, que clamam para que o debate de gênero e raça, assim como tudo que ele representa e faz acontecer, seja arrancado das escolas.

As questões de gênero são problemáticas porque nos colocam diante de perguntas sobre o que se estabeleceu como “natural”, o que se instituiu como o imponderável para a nossa existência. Uma dessas premissas é o alinhamento entre sexo biológico e gênero, responsável pelo modo binário como passamos a nos relacionar com o gênero, tomando como única referência possível o corpo do nascimento, considerado como uma dotação da natureza. Nessa lógica binária, os homens definem-se por seus corpos masculinos e as mulheres, por seus corpos femininos, não havendo possibilidades de escapar disto.

No entanto, não há corpo que não se constitua a partir de marcas e significados culturais e, na relação com o gênero, os corpos vão ganhando forma, expressão e sentidos. A filósofa norte-americana Judith Butler nos mostra que são os vários atos de gênero que criam a ideia de gênero e, mais do que isto, formam os sujeitos. Assim, o gênero tem os seus efeitos sobre o corpo e os modos como cada um de nós passa a percebê-lo, senti-lo e significá-lo, o que nos coloca diante dos gestos, movimentos e estilos corporais habituais, que vão nos marcando profundamente. São fartos os exemplos que temos em nossa cultura sobre esses efeitos e marcas: meninos e homens não choram; meninas e mulheres são mais sensíveis e frágeis; meninos e homens são mais racionais; meninos são mais hábeis para correr e pular; meninas são contidas e quietas; às mulheres cabe o ambiente doméstico; aos homens, a vida pública etc. Esses atos de gênero, mais do que definidores de atributos de uma pessoa ou outra, instituem e fundam um modo de ser e existir no mundo. Além disso, esses atos de gênero são ensinados e aprendidos na mais tenra infância e aí está uma das responsabilidades da Educação Infantil: a de não reiterá-los e perpetuá-los como se fossem a “natureza” de uma feminilidade ou masculinidade. Não tenho dúvidas de que, na educação das crianças pequenas, podemos atuar no sentido de criar situações e condições que lhes permitam pensar sobre as suas relações com os outros e sobre o que fazem, sentem e vivem como pessoas que são afetadas por essas ideias, atos e identidades.

O Programa Escola Sem Partido ancora-se na consolidação de uma identidade que ganha o emblema de substância humana, que se estabelece como a única forma possível de ser. Na perspectiva binária, toda forma de ser que não se iguale ou se equipare a essa identidade, protagonizada pelo homem, heterossexual, branco e burguês, precisa ser reprimida, sufocada e, até mesmo, dizimada. O Programa Escola Sem Partido, ao ter como um de seus eixos a retirada da pauta da educação o debate, a discussão e o trabalho pedagógico com as diversidades de gênero, sexuais e étnico-raciais, pretende manter intacta, de forma autoritária, essa identidade, rechaçando todas as outras possibilidades de ser. Diante disto, cabe a pergunta: por que é preciso falar de gênero e raça? Porque é urgente assumirmos como luta política a defesa de uma sociedade democrática, que se constrói na contracorrente da exclusão e nos abre caminhos para os encontros com a diversidade humana, com pessoas que, com suas sexualidades, gêneros, raça, culturas, classes sociais, idades, histórias, experiências, prazeres, habitam o mundo. São essas “portas” que o Programa Escola Sem Partido insiste em trancar por aversão à diversidade.  

O conceito de “educação nacional” proclamado pelo Programa Escola Sem Partido é a expressão da aversão, a que me referi antes, e do apelo obsessivo pela imposição de uma norma, que deve se aplicar a todos/as sem exceção. Em nome dessa norma, como imperativo da “educação nacional”, tudo o que escapa, transgride e se mostra como diferente precisa ser eliminado pelo organismo social, tal como um vírus, bactéria ou célula disfuncional, e para que essa fagocitose social funcione, a educação torna-se um instrumento-chave. Soma-se a isto o fato de essa norma não apenas devastar as diferenças subjetivas, mas também as diversidades culturais, geográficas, regionais, linguísticas, de credo, que se multiplicam em um país como o Brasil, de dimensões continentais.

Em síntese, o Programa Escola Sem Partido representa a voz do autoritarismo, do preconceito, da discriminação, da manutenção e do acirramento das desigualdades sociais que assolam o nosso país. Por isso, aqueles/as que lutam pela defesa de uma educação plural, cidadã, crítica e criativa e engajada na construção de uma sociedade democrática e mais justa precisam fazer as suas vozes ressoar em coro contra toda e qualquer forma de opressão.

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