Formação de Professoras para Educação Infantil| Entrevista com Maria Walburga dos Santos (UFSCar)

          

  Entrevista com Maria Walburga dos Santos, professora no Departamendo de Ciências Humanas e Educação da Universidade Federal de São Carlos, campus Sorocaba. Desenvolve pesquisa com as temáticas  educação infantil, jogos e brincadeiras e  comunidades quilombolas, coordenando pesquisa CNPq (Universal) na interface das áreas educação quilombola e infância. A entrevista integra reportagem especial da ANPEd sobre a Educação Infantil.

  

 

 

Quais são os principais programas na atualidade de formação dos professores para o trabalho educativo na Educação Infantil?

A formação para professoras e professores que atuam na Educação Infantil tem sido pauta de atenções e reivindicações. O trabalho educativo nas instituições de Educação Infantil requer formação constante e específica, conhecendo e reconhecendo o campo da docência com crianças pequenas (e bem pequenininhas, bebês) como espaço que exige das pessoas adultas o exercício constante de aprender, que respeite o tempo de ser criança, a infância, em dimensão coletiva, não doméstica, profissional. A formação inicial, nos cursos de graduação em Pedagogia, não dá conta de todas essas demandas. Além disso, quem escolhe ser professor é alguém que escolhe estudar sempre, movimentando pensamentos, ideias e ações.

Destaco um programa da atualidade, infelizmente já em fase de conclusão, sem previsão de nova oferta: os cursos de formação do Programa de Educação Infantil (PROEI) do governo federal. No âmbito da Educação Infantil, observando a pauta da formação dos profissionais que nela atuam, considerando as insuficiências e a necessidade de continuidade dessa formação, geradas pela prática cotidiana, apontamentos de profissionais e para atender a proposta delineada pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil (Resolução CNE-CEB nº5, de dezembro de 2009) que explicita as especificidades da infância, além de assumir concepção de criança e concepção de currículo na Educação Infantil, considerando-a como primeira etapa da Educação Básica, em 2010, o Ministério da Educação (MEC) implementou programa de formação continuada, como ação do Plano de Ações Articuladas (PAR), com duas frentes “Curso de Especialização em Educação Infantil”, em 2012 renomeado para Curso de Especialização Docência em Educação Infantil”,  e o  “Curso de Aperfeiçoamento em Educação Infantil”. Os dois cursos delimitavam como público alvo professores e demais profissionais de Educação Infantil das redes públicas que atuam diretamente com crianças, sendo uma das exigências do Curso de Especialização a conclusão de curso superior e para o curso de Aperfeiçoamento, término do nível médio. Ambos os cursos foram ofertados no formato presencial.

No caso específico do Curso de Especialização, por exemplo, no ano de 2010 temos que foi implementado em treze universidades federais, com adesão de mais seis em 2012. Também em 2012 realizou-se seminário da rede nacional dos coordenadores de curso de especialização, em Brasília. Em documento síntese (elaborado por essa rede de coordenadores) pautado em dados de 14 instituições, até aquele momento estavam sendo atendidas 1151 instituições de Educação Infantil, com 307 municípios beneficiados, com um número de 2494 profissionais em curso à época. A oferta 2014-2016 teve a adesão de 26 universidades, estando em processo de finalização no momento.

Além dos números para cursos presencias (que exigem organização e dedicação em vários níveis), a pauta pedagógica desses cursos de formação (especificamente o Curso de Especialização) versou pelo aprimoramento profissional (notadamente da docência na Educação Infantil) e olhar para pesquisa, a partir dos três eixos da matriz curricular adotada: Fundamentos da Educação Infantil; Identidades, Práticas docentes e Pesquisa; e Cotidiano e Ação Pedagógica, potencializando aos cursistas ampliar sua visão e compreensão da amplitude do trabalho que desenvolvem, marcando o lugar da relevância dessa profissionalidade,que nem sempre é reconhecida como tal por outros docentes e pela sociedade em geral, considerando como “menor” o trabalho pedagógico com crianças pequenas. Ao mesmo tempo, além da atenção às práticas com as crianças e comunidade que as envolvem, houve a intencionalidade de aprofundar olhar para a gestão, políticas públicas e valorização da carreira, muitos desses assuntos sendo tratados nas monografias solicitadas como conclusão de curso.

Tais cursos foram retirados das ofertas MEC em 2015, após terem beneficiado professores, crianças e suas famílias em diversos municípios e estados brasileiros.

 

Em relação à Educação Infantil, quais são as prioridades para uma formação qualificada de professores?

A proposta pedagógica para o trabalho com a criança pequena envolve necessariamente reconhecimento de sua inteireza e complexidade, expressa em ações e pensamentos e da compreensão de que essa criança é sujeito de direitos. Tal proposta também carece de inserção na cultura, no cotidiano das crianças e suas famílias, da baseem práticas sociais e culturais eainda responder aos desafios de educar e cuidar que englobem no trabalho pedagógico as especificidades da infância (desde bebês), as diferentes experiências (e linguagens) das crianças e suas famílias, a diversidade, o pertencimento étnico-racial, as diferentes culturas, organização de tempos, espaços, materiais, observando, como propõem as Diretrizes Nacionais Curriculares para Educação Infantil, o brincar e as interações como eixo da proposta pedagógica dessas instituições, inferindo, dentre outros aspectos, o desafio de romper com práticas autoritárias, cristalizadas, mecânicas, desvinculadas dos saberes das crianças, da realidade que faz sentido, e que ratificam antecipação de formas e conteúdos do Ensino Fundamental. A docência com a criança pequena requer, por suas demandas e processo dinâmico (as crianças habitam o tempo presente, o agora e não vão ser daqui a algum tempo, elas já são) processo de formação compromissado e de qualidade que vislumbre algumas questões, como: teorias e ações pedagógicas do campo da infância, políticas públicas e Educação Infantil, diferenças e diversidades culturais, gestão democrática em Educação Infantil, linguagens da infância, brinquedos e brincadeiras, corpo, arte, sons e infância etc. Enfim, temos uma miríade de questões emergentes e urgentes para pensar, formar e realizar com qualidade os trabalhos na Educação Infantil. Para quadro profissional tão exigente e específico, a formaçãoprioritariamente deveria, em minha opinião, observar e agir em relação à:

Formação inicial: os cursos de Licenciatura em Pedagogia, em sua maioria no país, precisam rever que lugar a infância e as crianças ocupam em suas matrizes curriculares.

Não raro apenas são oferecidas uma disciplina obrigatória e uma de estágio, às vezes contando com uma “optativa”. Essa formação inicial ainda no campo da graduação é fundamental para compreender a infância e as demandas próprias do trabalho com criança pequena, valorizando as culturas infantis, os direitos das crianças (e famílias), epistemologias, políticas e práticas da área. A formação inicial não pode ser aligeirada.
Formação constante: após a graduação, aquelas pessoas que se inserem nas instituições de Educação Infantil precisam estar em frequente processo de formação. Para tanto, há a urgência de oferta de programas que contemplem essa demanda via Políticas Públicas efetivas e permanentes de formação.  Nesse caso, observar que não são apenas os programas necessários, mas a instituição de Políticas Públicas que transcendam gestões governamentais e priorizem formação.

Em outra ordem de ideias, considero prioritário também o olhar para quem forma professoras e professores de Educação Infantil e sua relação com as questões da infância. Seja na graduação ou fora dela, demandas que movem as crianças e sua educação não podem ser negligenciadas ou desenvolvidas por pessoas alheias às especificidades dessa educação. Vale ainda ressaltar que essa formação deve observar as crianças desde muito pequenininhas (no berçário) e que não se limita a pré-escolas. As crianças de zero a três anos, que frequentam as creches estão inseridas na Educação Infantil, como primeira etapa da Educação Básica: profissionais de creche devem estar inseridos no movimento de formação, reforçando que recebem as crianças em espaços não domésticos e que promovem Educação Infantil.

Mais um adendo a essa questão: o envolvimento entre instituições de Educação Infantil e instâncias formativas (Universidades) precisa ocorrer em movimento de interfaces e colaborativo, considerando que ambas exercem formação. Creches e pré-escolas não se constituem em lugares depósito de teorias, desprovidos de ações significativas e as universidades não detêm conhecimento absoluto ou respostas receitas para todas as questões advindas no campo da formação. Essa visão dicotômica entre teoria e prática precisa ser revista e superada, favorecendo o trânsito entre as instituições, envolvendo a comunidade,na tentativa de estabelecer e fortalecer processos formativos que realmente impactem em qualidade no atendimento às crianças, compreendendo e ressalvando direitos e especificidades da infância.

 

Como você vê a importância da qualificação do trabalho educativo para a Educação Infantil, no contexto da obrigatoriedade escolar aos quatro anos?

A obrigatoriedade das crianças estarem matriculadas e cursarem a Educação Infantil a partir dos quatro anos de idade, aprovada pela aprovada pela emenda constitucional 59/2009,traz-nos algumas indagações em torno do trabalho pedagógico na Educação Infantil. Primeiramente, embora a obrigatoriedade seja a partir do quarto ano de vida, as instituições de educação infantil continuarão (assim esperamos) a receber crianças de zero a três anos. A partir dessa lógica, temos que a qualificação do trabalho educativo deve ocorrer para toda a Educação Infantil, atingindo a totalidade dos profissionais que nela atuam, atentando para as crianças de zero a cinco anos de idade.

 A partir da determinação da obrigatoriedade, penso que não podemos cair na tentação de caracterizar a educação das crianças de quatro anos de idade como se estivessem ingressando no Ensino Fundamental.

É preciso continuar a reconhecer que antes dos objetivos e resultados escolarizados, essas crianças precisam viver a infância também no espaço da Educação Infantil, em sintonia com sua imaginação, indagações a respeito do mundo, invenções, experimentos, culturas, construções...

Enfim, em sua relação com a vida que pode ser expressa de várias maneiras e sistematizações: pintura, movimento, canto, dança, desenhos, brinquedos, escritas, dentre tantas outras possibilidades, assumindo que as crianças colaboram e são construtoras também (com adultos e outras crianças) desse processo educativo, cabendo aos profissionais de Educação Infantil, zelar e aplicar a definição atual de currículo das DCNEIs: “concebido como um conjunto de práticas que buscam articular as experiências e os saberes das crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, ambiental, científico e tecnológico, de modo a promover o desenvolvimento integral de crianças de 0 a 5 anos de idade”.

Como resposta síntese a essa questão e reforçando o que já mencionei, qualificar o trabalho educativo com crianças a partir de quatro anos de idade tem o mesmo peso e significado de qualificar esse trabalho para toda a Educação Infantil (de zero a cinco anos, tal qual garante nossa legislação), considerando investimento em formação, equipamentos, salários, condições de trabalho e estrutura, em meio a  Políticas Públicas específicas para infância e Educação Infantil.

 

Na especificidade da Educação Infantil, quais são os pontos mais críticos com relação à alfabetização?

A alfabetização no contexto da Educação Infantil tem sido tema de debates, polêmicas e distorções, indispondo pesquisadores, acirrando tensões no campo da Educação Infantil e gerando equívocos no que se refere à formação. Aqui, penso que de forma breve cabem duas observações:

Desde os primórdios os seres humanos se comunicam por grafismos. Exemplo comum, mas sempre salutar, são as pinturas rupestres. Por sua vez, as crianças se comunicam de várias formas, com suas linguagens e expressões, incluindo grafismos. De forma que escrever e ler (convencionalmente) não são as únicas formas de se relacionar, estar, comunicar e estar nesse mundo. As crianças empreendem outras estratégias e somente no tempo da Educação Infantil podemos observá-las, conhecê-las, registrá-las, aprender e dar ao mundo o conhecimento delas.  Não podemos negar às crianças o acesso e direito à leitura e à escrita: esse acesso é uma categoria de inclusão social e política. Lutamos e defendemos essa ideia por ainda acreditar nos preceitos de justiça social em nossa sociedade. Todavia, não podemos esquecer e enrijecer as outras linguagens das crianças, da infância, em favor de uma só (ou duas). Brincar, interagir, criar, explorar realizam entre as crianças várias formas de letramentos, intensificando suas maneiras de ser, existir e subvertendo lógicas preconizadas por ensinos que as colocam em situação de repetição de formas e traçados. Bem pequenas, as crianças dominam tecnologias complicadas (como as de informática ou celulares, se considerarmos sociedade urbana na atualidade) e códigos diversos que as colocam em face e interações múltiplas, não sendo possível negar, como diria Paulo Freire, que as crianças realizam cotidianamente suas leituras de mundo, significando e ressignificando a realidade constantemente.

Não é o desenho ordenado e a junção das letras características da alfabetização no ensino fundamental que as fará, no cotidiano, se desenvolverem como pessoas plenas e sujeitos de direitos.

Há a tendência no Brasil de procurarmos culpados para o que se convencionou chamar fracasso da educação pública, normalmente responsabilizando professores e crianças, apelando inclusive a “amigos da escola” ou “notório saber” para “salvar a educação”, resquícios ainda da década de 1970 do século passado que preconizava as teorias de privação cultural e educação compensatória, condenando as crianças (então de seis anos) a horas e horas de exercícios de coordenação motora fina ou “prontidão”. O paradigma agora é outro e não queremos e não precisamos repetir esse equívoco, revisitando esse passado que não tem colaborado com a Educação ou as crianças. Não precisamos cair nessa armadilha.

Talvez, o que seja preciso, é que façamos uma boa imersão, nos letrando e alfabetizando, nas chamadas linguagens da infância a fim de, no lugar do controle e do ensino precoce de conteúdos e letras, em visão reducionista da própria alfabetização, possamos chegar mais perto das crianças e suas mensagens, nos surpreendendo e àmaneira da infância, descobrir que “criança feliz” frequenta uma instituição não caseira onde as especificidades da infância são reconhecidas e o trabalho pedagógico é realizado por profissionais bem formados, reconhecidos e cientes da complexidade e seriedade do trabalho que desenvolvem e capazes, por outro de se maravilhar no trabalho cotidiano com as crianças pequenas.