Financiamento/PEC 241 | Entrevista com Anete Abramowicz (UFSCar)


 

 Entrevista com Anete Abramowicz, professora titular do Departamento de Teorias e Práticas Pedagógicas da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) na área de Didática e Currículo: sub-área Infância. A entrevista integra reportagem especial da ANPEd sobre a Educação Infantil.

 

 

 

Como é possível avaliar a questão do financiamento (e cortes) para a Educação Infantil nos últimos anos?

Há um belíssimo artigo de 2004 de Fúlvia Rosemberg denominado: "Sísifo e a educação infantil brasileira". Neste artigo ela  afirma que a Educação Infantil vive a maldição de Sísifo.  Como todos sabemos o Sísifo da mitologia grega é condenado a repetir sempre a mesma tarefa de empurrar uma pedra até o topo de uma montanha, sendo que, toda vez que estava quase alcançando o topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo até o ponto de partida por meio de uma força irresistível, invalidando completamente o duro esforço despendido. Nada mais atual em relação a Educação Infantil. Dizia a Fúlvia "as forças progressistas que empurram a política de educação infantil para o topo - isto é, um atendimento democrático de qualidade -, e as forças contrárias que fazem-na despencar morro abaixo ". Estamos de novo morro abaixo!

Nesse artigo de Fúlvia de uma atualidade inaudita, ela mostra que o crescimento da EI nos países subdesenvolvidos segue 4 princípios, que permanecem atuais: a EI como uma forma de combater a pobreza, já que os países pobres "não dispõem de recursos públicos para expandir, simultaneamente, o ensino fundamental (prioridade número um) e a EI", de que "a forma de expandir a EI nos países subdesenvolvidos é através de modelos que minimizem investimentos públicos, dada a prioridade de universalização do ensino fundamental" e por fim "para reduzir os investimentos públicos, os programas devem apoiar-se nos recursos da comunidade, criando programas denominados "não formais", "alternativos", "não institucionais" isto é, espaços, materiais, equipamentos e recursos humanos disponíveis na "comunidade", mesmo quando não tenham sido concluídos ou preparados para esta faixa etária e para seus objetivos". O modelo segundo Rosemberg era de que a EI era uma "rainha da sucata". Como é atual este artigo!

O que vivemos hoje em relação a EI que as pesquisas em pequenos/médios/grandes municípios têm demonstrado, se pedra acima, as crianças de 4 e 5 anos estão sendo incorporadas na escola fundamental, já que a partir da lei 12.796/2013, tornou obrigatória a matrícula das crianças em idade pré-escolar. De pedra abaixo, isto vem se fazendo com a gradativa tendência de transferência da educação e cuidado dos “mais pequenos”, das crianças que estão nas creches, às unidades escolares filantrópicas e conveniadas, caracterizando o que temos chamado de “filantropização” das creches (Canella Henriques, Oliveira e Abramowicz, OBEDUC, 2016), resultado de uma adequação do poder público municipal à política pública voltada à universalização do atendimento das crianças em idade pré-escolar. Esta forma de convênio com as unidades conveniadas, em muitos municípios são geridos por entidades religiosas, e muitas vezes não atendem aos critérios de qualidade consubstanciado no documento "Indicadores de Qualidade na Educação Infantil" ( Brasília: MEC/SEB, 2009). Em muitos destes convênios o atendimento a demanda, por exemplo, vem sendo feito em detrimento da relação adulto/criança prescrita pelas resoluções dos conselhos municipais.

Roselane Fátima Campos no artigo intitulado: "'Política pequena' para as crianças pequenas? Experiências e desafios no atendimento das crianças de 0 a 3 anos na América Latina" mostrou a mesma tendência que temos argumentado em nossa pesquisa vinculada ao Observatório da Educação,  de que "o acesso à creche continua sendo muito restrito, especialmente se considerarmos o PNE, que estabelecia a meta de 30% para 2006 e de 50% até 2010. Se compararmos o período de 1995-2009, tanto para creche como pré-escola, podemos observar que o crescimento de matrículas na primeira foi de apenas 10,8%, ao passo que na pré-escola esse percentual foi mais do que o dobro: 27,8%. Também na creche encontramos as taxas mais elevadas de atendimento em instituições privadas".

Pelo Anuário Brasileiro de Educação de 2016 temos comprovado que "os dados da Creche ao longo do tempo, os avanços são menos contundentes. Desde 2001, a taxa de atendimento aumentou 15,8 pontos percentuais e chegou, em 2014, a 29,6%." Ou seja, há apenas 29,6% das crianças brasileiras nas creches e como a pobreza brasileira tem cor e classe social, as crianças mais pobres e pretas estão fora destas instituições, além das desigualdades regionais ou seja, a Região Norte, seguida da Nordeste são as que têm menos crianças nas creches. Pedra abaixo!!!

No entanto, o que torna dramática a situação da Educação Infantil no Brasil é em relação ao investimento público nesta etapa de ensino. Se em todos os níveis de ensino foi aplicado 4,6% do PIB em 2000, na Educação Infantil aplicou-se 0,4% e 13 anos depois este investimento cresceu a taxa insuficiente e ridícula de 0,2% chegando-se a 0,6% em 2013 (Fonte: Inep/MEC – Tabela elaborada pela DEED/Inep. Atualizada em 22/06/2015), com um crescimento exponencial das crianças em idade de EI, e um aumento de 0,2% de investimento isto é o mesmo que zero, ou negativo! Deste modo, há que se destacar que permanece a visão de que para crianças menores merecem políticas menores, pois um aumento em 10 anos de 0,2% do PIB, mostra o lugar que a EI ocupa na política pública brasileira, um lugar menor e insuficiente de modo que não atende nem a 30% das crianças brasileiras, e o pior deste cenário é que jamais irá atender a demanda das crianças brasileiras com este percentual de financiamento. Morro abaixo!!!!

 

Mais propriamente com a PEC 241, o que está mais em risco na Educação Infantil e na implementação de uma política de longo prazo?

*Esta resposta contou com a ajuda do Afonso Canella Henriques
Há um vídeo maravilhoso que resultou da tese do  historiador Sidney Aguilar denominado: "Menino 23 - Infâncias Perdidas no Brasil", que mostrou que durante os anos de 1930, 50 meninos negros foram levados de um orfanato no Rio de Janeiro para uma fazenda no interior de São Paulo, onde foram submetidos a trabalho escravo e identificados por números. É um fato ausente na historiografia da criança e da infância brasileira cuja historia é bem lacunar em relação às crianças/infâncias negras. Mas o que isto tem a  ver com a PEC 241? Há uma fala secundária, da historiadora Circe Bittencourt neste documentário que reproduzo aqui, sem exatidão, em que ela diz que a elite cafeeira a época dizia que o país era muito pobre e que o dinheiro portanto, deveria ficar com a  elite para que ela o gerenciasse em suas necessidades. Esta elite continua a mesma, presente, e tomando para si a riqueza brasileira.

Com relação a PEC 241, poderíamos fazer uma relação com PNE 2014-2024, mais especificamente com a meta 1 do plano que visa universalização da pré-escola e atendimento de 50% da demanda por creche.

De acordo com o Observatório do PNE, em 2014 no Brasil estavam atendidas 89,1% da demanda da pré-escola e 29,6% da demanda em creche.

Com o congelamento dos investimentos por conta da PEC, a meta 1 do PNE estaria seriamente comprometida, uma vez que a educação não receberia novos aportes financeiros, apenas a atualização monetária dos mesmos.

Partindo do princípio de que o congelamento dos investimentos ocasionará também uma estagnação no aumento de vagas e cruzando com os perfis socioeconômico, racial e regional, identificamos a perversidade da referida PEC.

A tabela a seguir apresenta o percentual de crianças atendidas nas modalidades creche e pré-escola,  levando-se em consideração a classificação socioeconômica pautada na renda per - capita das famílias.

 

Identifica-se que enquanto a meta do PNE para a creche foi atendida para os 25% mais ricos (51,2%) para os 25% mais pobres o indicador é de 22,4%, ou seja, bem inferior ao indicador nacional e com a estagnação dos investimentos esta situação não tem previsão de melhora. Mesmo para as crianças em idade de pré-escola as famílias mais pobres também serão as mais prejudicadas.

No que diz respeito ao perfil racial, apresentado na tabela a seguir, os pardos e pretos são aqueles com o menor percentual de atendimento.

Mais uma vez identifica-se que os pretos e pardos serão os mais prejudicados, pois são aqueles que estão com os menores percentuais de atendimento nas modalidades de creche e pré-escola.

No que diz respeito as discrepâncias regionais entre as regiões com maior concentração de riqueza (Sul, Sudeste) e as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, a PEC em nada ajudará ao cumprimento da Meta 1 do PNE e consequentemente à diminuição destas discrepâncias.

 

 

O congelamento dos investimentos no mínimo manterá as diferenças regionais, enquanto o Sudeste tem 35,8% das crianças de creche matriculadas a região Norte o indicador é de 13,3%, cenário que demandaria maior investimento para atendimento da meta do PNE. Se em 10 anos o percentual de aumento do investimento foi de 0,2% na Educação Infantil atingindo a 29,6% de crianças em creches isto significa que o percentual de atendimento será menor já que aumentará o número de crianças com o investimento estagnado. O que resulta aqui é o aprofundamento da desigualdade brasileira, a qual atinge de maneira contundente as crianças mais pobres e pretas. Sísifo terá forças para subir o morro novamente?