Estudantes do Ensino Médio, o ENEM e a Covid-19 | colaboração de texto

por Josefa Alexandrina da Silva (Unifal) e Luís Antonio Groppo (Unifal)

 

A pandemia de coronavírus (SARS-Cov-2), causador da Covid-19, com sua alta potencialidade de contágio e letalidade, em um curto espaço de tempo impôs mudanças radicais na vida social em todas as regiões do planeta. Diante da intensa interligação entre os países, a disseminação da doença se tornou inevitável, colocando em evidência um ângulo cruel da globalização. 

Para conter o avanço da doença, ocorreu uma drástica redução de deslocamentos e fechamento das fronteiras nacionais.  No interior dos países, o isolamento social é visto pelas autoridades sanitárias como a principal medida para atenuar o avanço da doença ou, ao menos reduzir o contágio em escala catastrófica.  As medidas de isolamento social adotadas pela maioria dos países conduziram à redução de deslocamentos humanos, interrupção de parte da produção industrial, restrição das atividades comerciais para setores não essenciais e interrupção das atividades presenciais em escolas e universidades. 

Diante da necessidade de isolamento social, a pandemia alterou com extraordinária velocidade os modos dominantes de se trabalhar, conviver e consumir. Entretanto, a possibilidade de se manter em quarentena é praticamente impossível para os grupos sociais que se encontram em situação de vulnerabilidade social, famílias numerosas que vivem em espaços exíguos, com alimentação precária, sem acesso aos serviços de água e esgoto, e os serviços de internet. Como a pandemia não atinge à toda a população da mesma maneira, já se delineiam as  primeiras análises sobre seus impactos sobre as mulheres, os trabalhadores precários, refugiados, deficientes e idosos, como fez Santos (2020), indicando que estamos vivenciando um contexto de intensificação das desigualdades sociais. 

Esse texto, em particular, produzido a partir de investigações e debates do Grupo de Estudos sobre a Juventude da UNIFAL-MG, visa discutir a educação remota sob a perspectiva de estudantes do Ensino Médio (EM) no Brasil. Trata-se de uma análise imediata, no “olho do furacão”, proposta exatamente para que se possa mensurar também o impacto emocional da pandemia para adolescentes e jovens estudantes.

Sílvio Carneiro, em texto provocativo, questiona a “ideologia da aprendizagem”, ou seja, a subsunção do ensino e da riqueza das relações e práticas escolares à presunção da garantia da aprendizagem de certos conteúdos, habilidades ou competências pré-estabelecidos por agências externas à escola, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), e auferidos por exames padronizados e igualmente externos, como o PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) e o próprio Exame Nacional de Ensino Médio (ENEM). Para ele, a aprendizagem é “um fenômeno que não pertence ao debate da educação” e “índices de avaliação de desempenho pouco têm a ver com o que se passa nas escolas”. (Carneiro, 2019, p. 41). Recordar isso é se opor à transformação da “via dupla dos processos de ensino-aprendizagem” na “via de mão única da aprendizagem”. (Carneiro, 2019, p. 42). E sustentar que o que há de mais imediato na educação, antes mesmo de qualquer conteúdo, é uma relação baseada em uma “alteridade radical”, no encontro de subjetividades muito diferentes, cujo resultado tem sempre muito de aberto e imprevisível, tanto para educandas e educandos, quanto para educadoras e educadores: “tudo pode acontecer dentro da sala de aula” e, “quando a educação se efetiva realmente, sempre se encontra algo mais do que se procura” – para além de conteúdos, habilidades e competências, estão em jogo os desejos e as experiências. (Carneiro, 2019, p. 44).

Em pesquisa que o Grupo de Estudos sobre a Juventude tem realizado, entrevistado pessoas que, em 2015 e 2016, foram estudantes secundaristas que ocuparam suas escolas, temos perguntado também acerca do que foi mais marcante em suas trajetórias escolares antes do movimento das ocupações. Dando razão a Carneiro (2019), em suas respostas, pouco falam de conteúdos, habilidades e competências, mas sobretudo de relações e experiências, tanto negativas quanto positivas, tanto com seus pares, como com docentes. Estudantes e professoras e professores são lembrados por terem oferecido amizade ou um abraço de consolo, tanto quanto por praticarem o bullying ou a intolerância. 

Quando debatíamos sobre esse tema, o Ministério da Educação (MEC) anunciara a manutenção das datas de realização do ENEM em 1 e 8 de novembro de 2020 – posteriormente, foi obrigado a recuar. Peça publicitária do MEC dizia que “o Brasil não pode parar”, enquanto o ministro declarava em entrevista que “o ENEM não é cem por cento justo” e que seu objetivo “é selecionar as pessoas mais qualificadas e mais inteligentes”.

Procuramos saber o que disseram entidades do movimento estudantil e buscar alguns relatos de estudantes acerca disso. Esses relatos nos ajudam a compreender as desigualdades sociais históricas em nosso país, às quais são acrescentadas outras, como a desigualdade no acesso às novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs). Dados da Folha de S. Paulo afirmam que 70 milhões de pessoas no Brasil têm acesso precário à Internet: 23% do total de brasileiras e brasileiros nunca acessaram a Internet, número que é de 41% na zona rural e de 20% da zona urbana; nas classes D e E, 41% das pessoas nunca acessou a Internet, número que vai a 19% na classe C; e, entre as pessoas que usam a Internet regularmente, 56% o fazem apenas pelo celular (85% nas classes D e E e 61% na classe C). (FOLHA DE S. PAULO, 17 maio 2020, A1).

As reações ao anúncio do ENEM foram largamente contrárias. Mas talvez não tenham vindo de quem mais se prejudicou com ele, já que são as pessoas que ficaram de vez sem acesso às novas TICs, de vozes sem meios para se propagar. Ainda assim, relatos encontrados buscaram representar essas pessoas em nova exclusão: docentes, entidades docentes, entidades do movimento estudantil e estudantes com acesso, inclusive de escolas privadas.

Os adjetivos vão se repetindo ao longo dos relatos: injusto, absurdo, desumano, lamentável. A principal entidade do movimento estudantil do EM, a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES), lançou a campanha #AdiaEnem, que ganhou grande e imediata repercussão nas mídias sociais. No anúncio da campanha, afirmou o seu presidente:

É uma irresponsabilidade manter o cronograma do ENEM como se nada estivesse acontecendo. Estamos com as aulas suspensas e ainda não sabemos como cada rede vai se adaptar. Isso é segregar ainda mais quem já tem o acesso à universidade prejudicado. É acentuar a diferença. (Pedro Gorki apud UBES, 3 abr. 2020). 

A mesma notícia traz um relato sobre a ansiedade, algo que afeta mesmo estudantes das classes média e alta, apesar de terem mais condições de acompanhar as atividades remotas: “Vejo pessoas tendo aula online, com atividade para fazer, principalmente de escolas particulares, e dá muita ansiedade. Tento focar nos estudos sozinha, mas é bem difícil com tudo o que estamos vivendo”. (apud UBES, 3 abr. 2020).

Grêmio estudantil de escola estadual em Sabará/MG propõe campanha para democratizar o acesso às TICs, fazendo as perguntas cruciais pelo Facebook: “O acesso à tecnologia é democrático? Todos estão realmente conectados? Há estrutura da Internet a todos?”. Alguns comentários à notícia de manutenção do ENEM no Facebook trazem outras falas diretas de estudantes: 

Um monte de criança brasileira vai pra escola pra ter a única refeição do dia. [...] falta diploma de realidade no Planalto. 

Lamentável! A maior parte dos sistemas de ensino com aulas presenciais suspensas... Imagino como será a Educação para TODOS! Como serão as notas e o SISU? DESRESPEITO! ALUNOS DO TERCEIRO ANO DE 2020 PREJUDICADOS! (Relatos de estudante no Facebook).

Tais estudantes aludem à desigualdade social e de acesso às TICs, mas também, implicitamente, lembram que pessoas que já haviam terminado o EM podem fazer novamente o ENEM, certamente em condição de vantagem em comparação com quem terá o ano letivo de 2020 muito abreviado caso se mantivessem as datas do exame nacional. Lembram que o ENEM mantém a lógica da competição no acesso à ES, em especial a IES, cursos e carreiras mais afamados. Indicam que, mesmo dentro dessa lógica concorrencial, há um forte sentimento de injustiça das e dos estudantes do EM: tanto na concorrência intergeracional, ao se criar uma nova desigualdade, quanto na concorrência interclasses, pelo acréscimo de iniquidades.

Uma interessante matéria do El Pais Brasil (12 maio 2020) acompanhou o dia-a-dia de adolescentes de diferentes grupos e regiões do país em isolamento social. O tema da educação se destacou. Aluna do 3º ano do ensino médio da rede estadual, moradora de bairro periférico da capital paulista, de 19 anos, diz que “a escola liberou agora os estudos online, mas a maioria não conseguiu acessar o site ou enviar as lições”. Estudante do 1º ano do EM de escola particular do Rio de Janeiro, da classe média-alta, afirma sobre as aulas remotas: “Eu já tinha consciência da desigualdade e de que tenho privilégios, mas agora me dou mais conta disso”. De condição socioeconômica intermediária, aluna do 2º ano do EM de escola estadual em Pernambuco afirma que sua escola foi uma das poucas a adotar a aula online e que sua maior dificuldade não é de ordem tecnológica:

Ainda que os professores passem tudo na plataforma online, não é a mesma coisa que estar na sala de aula explicando e fazendo perguntas. [...] estou com o emocional fragilizado. [...] Enquanto alguns romantizam a quarentena e falam sobre se reinventar, a se adaptar a plataforma online, outras pessoas nem mesmo têm acesso à Internet. (apud El Pais Brasil, 12 maio 2020).

Esse último relato veio recordar o quanto o isolamento social ou a interrupção de muitas atividades regulares têm afetado fortemente jovens e adolescentes, em todos os grupos sociais, ainda que de diferentes formas. Indica que a iminência do ENEM – mesmo que adiado - só aumenta a angústia e o peso dessa ruptura abrupta da intensa vida social desses grupos etários, já que não apenas as escolas tiveram atividades interrompidas, mas também boa parte das opções de lazer e recreação, afora o impacto da pandemia no trabalho e na renda familiar, que têm afetado com mais perversidade as classes populares.

Como costuma fazer o hip hop, suas letras têm conseguido sintetizar com brilhantismo a situação vivida pelas juventudes. Assim afirma postagem de 16 de maio de 2020, no Facebook, assinado pela “Juventude da ONG Suburbana”, via rimas típicas do rap:

Deixa eu te explicar, não posso estudar de qualquer lugar, pois não tenho acesso a recursos tecnológicos como o aluno da escola particular./ [...]Quando a aula voltar e no tempo certo pra me preparar, quero assim a prova prestar./ Não esqueça que o Brasil é grande em desigualdade, não se pode reforçar./ Enquanto uns estudam, outros lutam na Pandemia pra sua família se alimentar.

Os relatos ainda deixam em aberto que a pandemia pode ser encarada como um desafio para as práticas formativas e o ensino. Desafio não no sentido de atender às exigências externas de aprendizagem de dados conteúdos, nem de ter bons resultados nos exames de aferição, mas, sim, de manter a abertura das práticas de ensino, mesmo que online ou remotas, para o que há de surpreendente, imprevisível e criativo no encontro entre diferentes pessoas e distintas experiências e conhecimentos.

Não é tarefa fácil. Talvez, acabemos por concluir que é impossível. Aluna de escola técnica estadual de Fortaleza diz: “Eu nunca pensei que sentiria tanta falta das aulas presenciais”. (UBES, 3 abr. 2020). Agora, para além do aprendizado de conteúdos fundamentais segundo o PISA, para além de se preparar para “se dar bem” no ENEM e vencer a concorrência pelo acesso à ES, revela-se muito do que angustia adolescentes e jovens em tempos de pandemia e afastamento social: o apartamento da riqueza, da criatividade e da contingência do tempo do educar, dos seus encontros, desencontros e reencontros. Pensar o ensino remoto apenas como transmissão de conteúdos, pode até prover algum preparo ao ENEM, mas fica muito aquém do imponderável e do desejo das relações educacionais em sua plenitude.

Josefa Alexandrina da Silva é Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Foi professora de Sociologia da Rede Pública Estadual de São Paulo. Atualmente, é professora Substituta da Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG).

Luís Antonio Groppo é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas. Professor adjunto da UNIFAL-MG. Coordenador do GT03 – Movimentos sociais, sujeitos e processos educativos da ANPEd.

Referências

CARNEIRO, Silvio. Vivendo ou aprendendo... A “ideologia da aprendizagem” contra a vida escolar. In: CASSIO, Fernando (org.). Educação contra a barbárie. Por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 41-46.

EL PAIS BRASIL. Jovens têm choque de consciência sobre privilégios e injustiças do Brasil durante a pandemia. 12 maio 2020. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-05-12/jovens-tem-choque-de-cons.... Acesso em 13 maio 2020.

FOLHA DE S. PAULO. 17 maio 2020, A1.

SANTOS, Boaventura S. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina, 2020

UBES. #AdiaENEM: Estudantes denunciam desigualdades para exame em 2020. 3 abr. 2020. Disponível em: <http://ubes.org.br/2020/adiaenem-estudantes-denunciam-desigualdades-para.... Acesso em 11 maio 2020.