Educação nos momentos atuais - reflexões a partir de entrevista do GT 06 com o antropólogo Carlos Rodrigues Brandão

Esse texto apresenta uma breve reflexão a partir de entrevista realizada por Valéria Oliveira de Vasconcelos, vice-coordenadora do GT 06 da ANPEd (Educação Popular) com o antropólogo Carlos Rodrigues Brandão, um dos principais representantes da Educação Popular no país e no mundo.

Considerando que na atual conjuntura política, econômica e social em que se encontra nosso país, urge (re)construir formas de educação capazes de iluminar caminhos para essa nova era que se avizinha, Brandão nos brinda com algumas narrativas sobre sua relação com Paulo Freire. Suas memórias apontam os primórdios da Educação Popular e da cultura popular como horizontes a serem retomados, vislumbrados, e perseguidos.

Já de princípio, ao tratar das origens do trabalho pedagógico emancipador, Brandão traz o que parece ser um bom lema para o enfrentamento do momento atual: Militávamos cantando. Educávamos poetando. 

A partir daí nos convoca a refletir sobre [...] uma sequência de perguntas encadeadas que deságuam na educação: “que ser humano e para que vida e destino formá-lo”; “Se este ser é essencial e existencialmente um ‘ser social’, para que sociedade e para a construção humana de que sociedades formá-lo?”; “Se a vida em sociedade que ele vive e comparte com os outros  é uma vida significativa e significada através de uma cultura, ou uma pluralidade de culturas, como formar seres humanos para que através de suas culturas eles criem, consolidem e transformem os mundos sociais em que vivem?”; “Consequentemente, qual pedagogia (ou quais pedagogias, pluriculturalmente) devem ser praticadas para realizar qual ou quais modalidades de educação?”

Problematizando esse momento de “quarentena”, o qual Brandão prefere chamar de “recolhimento”, precisamos estar atentas e atentos a quais rumos queremos dar à educação escolar ou não, quando essa situação abrandar e, em tese, tudo “voltar ao normal”. Será - como já foi no tempo passado e é no tempo presente - fundamental refletir e lutar contra aquelas pedagogias que [...] submetem tanto o ser humano em sua essência e em sua existência, quanto a comunidade social em que ele vive a sua vida e o seu destino, a algo a cada dia mais imposto como uma realidade social e, mais ainda, como a própria instância fundadora, ordenadora e gestora da vida social. E prossegue nosso mestre: Se me fosse pedido para resumir todo o pensamento fundador de Paulo Freire em algumas poucas palavras, como breves sentenças de menos de uma linha cada, eu escreveria isto: Que ao ser humano seja dado: Viver a sua vida; Criar o seu destino; Aprender o seu saber; Partilhar o que aprende; Pensar o que sabe; Dizer a sua palavra; Ousar transformar-se; Unir-se aos seus outros; Transformar o seu mundo; Escrever a sua história.

Tanto Brandão como Freire nos instigam ao “diálogo verdadeiro”, uma vez que: “Diálogo” é uma palavra ao mesmo tempo substantiva e perigosa. Ela serve tanto a Bolsonaro quanto a Lula. Serve ao pior poder e serve a quem busca libertar-se dele. Serve à TV Globo e ao MST. Em pedagogias tradicionais o diálogo quase sempre é apenas uma metodologia. Entre nós o diálogo é a porta de entrada da educação e também a de saída. Não usamos didaticamente o diálogo para ensinar; ensinamos para que pessoas aprendam a se tornar dialógicas. Aprendam a dialogar com elas-mesmas, com os seus outros e com o seu mundo.

Apesar de não se reportar especificamente à grave crise econômica, social, política e sanitária que vivemos atualmente, nos pergunta com muita propriedade: Para onde estamos indo nessa pressa dispersiva toda?  Para que lugar? Para que vida? Para que mundo?

Nessa perspectiva, ao ser questionado sobre as posições do governo Bolsonaro sobre Paulo Freire, Brandão assevera: Tenho me preocupado pouco com o que o “governo Bolsonaro” (ou o desgoverno daqueles que exercem de fato o poder no Brasil, tendo em Bolsonaro um pálido e patético emissário oficial do governo). [...] estou menos preocupado com “o que eles estão fazendo com a gente” e mais ocupado com “o que a gente deve fazer com o que estão fazendo com a gente”. Atravessei todos os anos da “ditadura militar”, parte como estudante e parte como professor, Mas ao longo dela toda, como um pesquisador de culturas populares (negros e camponeses) e um militante da Educação Popular, desde janeiro de 1964, vivi e vivemos momentos muito difíceis, e para algumas e alguns de nós, terríveis mesmo. Hoje recordo que tanto aqui no Brasil, como no Chile, na Argentina e no Uruguai sob ditaduras, nunca fomos tão criativos. Nunca lutamos tanto, nunca enfrentamos tanto, nunca fomos tão insurgentes e aguerridos, nunca cantamos, teatralizamos, filmamos e poetamos tanto. Nunca resistimos, inventamos e criamos tanto. É hora de voltar a isto! Menos crítica teórica boa para encontros acadêmicos, e mais ação concreta junto ao povo e nas ruas. Menos mera resistência eletrônica e mais respostas criativas por escrito ou nos círculos insurgentes. 

Finaliza Brandão sua entrevista com uma sabedoria profunda de quem vem vivendo sua vida, aprendendo e partilhando seu saber, dizendo sua palavra, ousando transformar a si e ao mundo, unindo-se generosamente aos seus outros e escrevendo solidariamente sua história:

As críticas a Paulo e a tudo o que gira ao redor de suas teorias e profecias deveriam ser previstas. Terrível seria se ele não fosse tão criticado por este governo, e tão tentativamente (sem sucesso real algum) desconsiderado e posto à margem.  Acho que uma das maiores homenagens que um governo culturalmente retrógrado e imbecilizado, religiosamente fideísta, regido por princípios de crença e prática do século XVII e politicamente servil ao extremo ao capitalismo em seu 4º tempo de predomínio e hegemonia, está justamente  no que estão buscando fazer com a sua memória, ao invés de ignorar Paulo Freire ou, pior ainda, considerá-lo até mesmo um aliado. Vocês que me entrevistam sobre Paulo Freire são uma parcela da prova de que quanto mais acusações a Paulo e tentativa de apagamento de seu nome aqui no Brasil tanto mais a sua presença é insurgente e assertivamente ativada em todo o mundo. E não tanto a pessoa de Paulo, pois não se trata de defender um “mártir injustiçado”, mas o seu inatacável legado. Não a pessoa de um alguém que morreu e se foi, mas a memória do que ele criou. E, penso, trata-se de não tanto manter “vivo e aceso o seu pensamento”, mas de, sobretudo, recriar, reinventar, superar desde o seu legado e em seu nome. 

Valéria Oliveira de Vasconcelos. Docente do Programa de Pós Graduação do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL). Vice-coordenadora do GT06 – Educação Popular

*Todos os trechos em itálico são recortes literais de entrevista ainda inédita cedida por Carlos Rodrigues Brandão para compor esse texto. (Revista Espaço Pedagógico: Paulo Freire - Pedagogia do Oprimido – 50 anos. V. 27, N. 3, set./dez. – 2020. Organizador: Eldon Henrique Müll).

Valéria Oliveira de Vasconcelos e Carlos Rodrigues Brandão