Deliberação sobre diretrizes curriculares para formação de professores gera crítica de instituições paulistas

Instituições estaduais de SP alegam engessamento de carga horária e cobram mais diálogo por parte do Conselho Estadual; CEE afirma que instituições continuarão com autonomia na formação de professores

reportagem: João Marcos Veiga

Uma deliberação recente do Conselho Estadual de Educação de São Paulo, que estabelece diretrizes curriculares para a formação de profissionais docentes,  impactou negativamente junto a cursos de Pedagogia e Licenciaturas atingidos pela medida no estado. "Primeiro pela forma arbitrária com que o CEE nos apresentou a ela. Ou seja, a mesma nos foi comunicada para que fosse posta em prática quase que imediatamente, sem tempo para uma reflexão, discussão e negociação de seus termos. Depois, porque reforça a dicotomia entre o saber específico e o saber pedagógico, afirma a professora Alexandrina Monteiro, da Comissão de Licenciaturas da Unicamp.

A nova deliberação (n.154/2017), publicada no dia 07 de junho, apresenta uma revisão e compatibilização de resolução nacional de 2015, do Conselho Nacional de Educação, com medida anterior do próprio CEE (n.111/2012). Em entrevista ao Portal da ANPEd assinada coletivamente, professores da FEUSP criticam o documento por fixar balizas rígidas para organização do percurso curricular, incluindo conhecimentos que devem ser abordados com respectiva carga horária. Nesse sentido, ficou estabelecido que 200 horas do currículo de curso de licenciaturas e 600 horas de Pedagogia deverão ser destinadas a "revisão e enriquecimento dos conteúdos curriculares do ensino fundamental e médio" - cerca de 18% das 3.200 horas mínimas estabelecidas para a Pedagogia na resolução nacional de 2015. Segundo os professores, a medida anterior estabelecia apenas que 2.200 horas deveriam ser destinadas  "à formação geral e específica", com definição e modo de organização "a cargo da Instituição de Ensino Superior". Nesse sentido, a Deliberação 154/2017 estaria desconsiderando "as singularidades de cada instituição e comunidade atendida". Outro ponto crítico a que se referem é a obrigatoriedade da adequação para todos os cursos de licenciatura que se encontram sob a égide do Conselho ainda neste semestre, independentemente do “prazo de validade do último ato regulatório”. 

Imagem: Aula na Faculdade de Educação da USP. Divulgação/Seção de Comunicação e Mídia da FEUSP

"Acho que vocês estão com uma falta de dados. Essa nossa deliberação muda pouquíssimo a de 2012", rebate Rose Neubauer, relatora da atual deliberação, em entrevista à ANPEd. Segundo a professora aposentada da USP, a resolução estadual n.111/2012 já previa 800 horas para "formação científico-cultural". O conteúdo de "revisão e aprofundamento" estaria diluído dentro dessa carga horária, agora de 600 horas. "E vai ser o curso, a faculdade que vai se dar essas horas, que vai ser uma coisa ridícula, cerca de 100 horas num curso de cerca de 3.600, 4 mil horas, pra aprofundar conceitos básicos que possibilitem ao aluno ter competência pra continuar o curso sem um insucesso muito grande. É uma quantidade de horas muito, muito pequena", defende Neubauer. No entanto, carta divulgada pelas Comissões Coordenadoras das Licenciaturas e Pedagogia da USP, no dia 31 de julho, ainda criticou a "retomada dos estudos de Língua Portuguesa com sentido idêntico àquele que vigorou na primeira versão da Deliberação n. 111/2012 - segundo os docentes, várias medidas como essa foram alvo de críticas à época, com revisões em deliberação de 2014 (n.126), após pedido de diálogo junto ao CEE-SP.

Para Rose Neubauer, a deliberação atual, assim como outras ações do CEE-SP desde os anos 2000, caminha no sentido de atuar sobre uma questão específica.

"Qual é o principal problema na educação pro baixo desempenho das escolas básicas? Formação de professores. [...] Se você não tiver um professor bem formado é impossível ter um bom aluno saindo da escola", argumenta Rose Neubauer.

"Que o professor não só domine a didática, mas também o conteúdo que ele vai ensinar", afirma ao justificar a necessidade de revisão e aprofundamento do que será ensinado nas escolas, assim como a importância da Prática como Componente Curricular (PCC), algo já enaltecido pela resolução nacional.

Imagem: Rose Neubauer. Crédito: CEE-SP.

Para muitos professores e coordenadores de cursos no estado, a medida do CEE-SP fere a autonomia das instituições, garantida pela Lei de Diretrizes e Bases (LBD), de 1996, em seu artigo n. 53: "No exercício de sua autonomia, são asseguradas às universidades, sem prejuízo de outras, as seguintes atribuições: [...] II - fixar os currículos dos seus cursos e programas, observadas as diretrizes gerais pertinentes". Neubauer rebate a crítica ao afirmar que as instituições terão autonomia para determinar disciplinas a serem revisadas e diluir a carga horária em seus planos pedagógicos. Mas, ao mesmo tempo, afirma que a LDB igualmente determina que a autonomia das universidades deve obedecer "às normas gerais da União e, quando for o caso, do respectivo sistema de ensino" (artigo 53, inciso I). "Absolutamente está dentro da legislação o que a gente faz. Logicamente ninguém vai dizer pra essa universidade se ela vai colocar essa disciplina no primeiro ou no segundo ano, este autor ou aquele na bibliografia. Mas as universidades, assim como outras instituições, têm que seguir as normas estabelecidas tanto pelo sistema nacional quanto pelo seus sistemas de ensino", aponta a também pesquisadora da Fundação Carlos Chagas, afirmando que até o momento a adesão tem sido alta, citando como exemplo o fato de apenas seis cursos não terem se adequado, de um recorte de 94 licenciaturas somadas de Unesp e Unicamp.

Para os professores da USP entrevistados, os cursos sofrem pressão indireta para se adequarem ao se considerar que a emissão de diplomas está condicionada à renovação do reconhecimento do curso e que isto depende da adequação à Deliberação CEE nº 154. Segundo eles, o histórico recente indica que os cursos que não se submetem às exigências dessa instância têm o seu reconhecimento renovado por um período menor e condicionado à realização das mudanças exigidas. Os docentes ainda relatam que em reunião organizada pelo CEE no último dia 29 de maio, na qual foram apresentadas as diretrizes complementares, uma das conselheiras teria dito a todos presentes: “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”. "Ou seja, a pressão existe e não há nenhum interesse em ocultá-la", afirmam os professores.

A questão para parte da crítica dos cursos parece recair sobre a falta de diálogo. "A publicação de três deliberações no prazo de cinco anos, a concepção de formação de professores que as inspiram e o balizamento curricular que impõem não poderiam ser mais prejudiciais aos/às professores/as e estudantes que vivem o cotidiano das salas de aula. O clima de desconfiança e instabilidade se instaurou em várias unidades universitárias", afirmam os professores da FEUSP em entrevista à ANPEd. Além disso, segundo eles, incomoda muito a ideia de que somente a elaboração de prescrições curriculares comuns a todas as escolas e a intervenção nos currículos dos cursos que formam professores desencadeará a melhoria da Educação Básica. "Não é o que dizem as pesquisas a respeito do assunto." 

"Embora os cursos de licenciatura não possam se furtar à autocrítica e ao aperfeiçoamento constante de seus projetos pedagógicos, mediante o estudo da realidade escolar e das demandas apresentadas pelos egressos, a prioridade deveria ser a valorização dos profissionais da educação através de salários dignos e a garantia das condições para o desenvolvimento do trabalho de professores e estudantes. A enorme quantidade de docentes temporários e os índices de absenteísmo e exonerações revelam quais são os problemas mais urgentes."  Professores da USP em entrevista ao portal da ANPEd.  

Atividade com crianças na Faculdade de Educação da USP. Crédito: Divulgação/Seção de Comunicação e Mídia da FEUSP

Tal posição é ecoada pela professora da Unicamp:

"Nos dias atuais um dos grandes desafios para a formação de professores é superar a desqualificação social e política que atravessam as narrativas dessa prática profissional. É interessante notar como as pessoas das mais diversas áreas sentem-se tranquilos para falar e dizer o que deve ou não fazer parte da formação do profissional da educação".

Segundo Alexandrina Monteiro, os cursos de licenciatura seguem "minimizados e despolitizados". "A nova deliberação os desqualifica ainda mais. Assim, não se trata de afirmar que os cursos de licenciatura não precisam ser discutidos e talvez modificados, mas, o encaminhamento dessa mais recente deliberação mostra um retrocesso dos pequenos avanços e conquistas empreendidos até o momento."

Outro ponto da atual deliberação do CEE-SP que causou contrariedade foi a âncora deste documento à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), proposta ainda em debate para Educação Infantil e Ensino Fundamental e sequer formulada para o Ensino Médio.

"Vivemos um tempo em que modificações curriculares com consequências gravíssimas para a sociedade são simplesmente impostas, por meio de medidas autoritárias e num contexto de redução ou aniquilamento das instâncias coletivas de discussão", criticam os professores Marcos Garcia Neira, Claudia Valentina Assumpção Galian, Elizabeth dos Santos Braga, Rita de Cássia Gallego e Ocimar Munhoz Alavarse, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

Por sua vez, Rose Neubauer não vê problema na referência à BNCC, dizendo que todos os cursos terão que passar por readequações após a aprovação desta, porém com mais impacto nas Licenciaturas do que na Pedagogia. "A Base não vai poder reinventar todos os conteúdos da escola pública. Acho que a área da Educação gosta de discutir mais os rótulos do que os conteúdos. Uma hora eu chamo de habilidade, outra hora eu chamo de competência, outra hora eu chamo de direitos de aprendizagem. Apreciam muito essa discussão mais de forma do que de conteúdo. Nós vamos ter que continuar alfabetizando as crianças", argumenta.

Para a integrante do Conselho Estadual de Educação de São Paulo, tanto as deliberações do CEE-SP quanto a nacional avançam em vários sentidos - esta atingindo mais os cursos privados, que não tinham carga horária mínima necessária para a formação de um professor.

"A resolução de 2015 foi importante, além de garantir fundamentos. Você não pode ser professor sem saber ler, fundamentos básicos - você tem que conhecer aquilo que é específico na formação de professores." Rose Neubauer (CEE-SP) 

Neubauer ainda levanta outra questão, referente à identidade dos cursos de formação de professores. "Antes as licenciaturas tentavam ser uma réplica dos bacharelados. Essa que é hoje a grande diferença. A licenciatura tem que ter um perfil específico. Preparar um professor de física não é igual preparar um físico, tem que ter o olhar voltado pro que ele vai ensinar no ensino médio. Não pode deixar de lado isso", defende.

Alexandrina Monteiro acredita que é chegado o momento desses cursos superaram a dicotomia entre saber específico e disciplinas pedagógicas, pensando também na finalidade multifacetada desse conhecimento. Como exemplo, ela cita as disciplinas de cálculo, que na maior parte das universidades são organizadas de forma universal e genérica – como se independessem do curso para o qual são ministrados. Assim, uma mesma disciplina é oferecida para atender os mais variados cursos como: engenharias, bacharelados (química, física, matemática, biologia) e os cursos de licenciatura. "Ou seja, ainda não há uma disposição para discutir sobre como um curso de cálculo ou de anatomia, ou de história da África deve ser abordado quando ministrado para cursos de formação de futuros professores. Diante disso, entendemos que é necessário reformular o modelo dos cursos de formação de professores, mas numa perspectiva que permita uma maior articulação entre os saberes, que garanta cada vez mais uma formação (in)disciplinar, política e socialmente comprometida com questões éticas com respeito às diferenças", concluir a docente da Unicamp. Os professores da FEUSP ouvidos pela ANPEd também defendem o debate sobre alterações curriculares, mas a partir de uma perspectiva mais plural e democrática.

"Não vemos problema em apresentar à sociedade uma outra visão de currículo, desde que se criem condições para leitura, análise e discussão, partindo da reflexão sobre o que significa um documento curricular de tamanha envergadura, o que se pretende com ele, se é ou não necessário."