Corte Etário| Entrevista com Bianca Cristina (USP)

 
 

Entrevista com Bianca Correa, professora de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP), na área de Políticas e Práticas da Educação Infantil, onde também integra o Programa de Pós-Garduação em Educação.  A entrevista integra reportagem especial da ANPEd sobre a Educação Infantil.

 

 

 

Sobre a temática de "corte etário", qual a importância da posição do CNE (de 31 de março), questionado na área judicial, que afirma a garantia de direitos das crianças na etapa da Educação Infantil?

A definição, pelo CNE, de uma data para garantir que as crianças sejam matriculadas no ensino fundamental com seis anos completos é de suma importância para minimizar problemas que, por conta da organização da maioria de nossas escolas, já afeta negativamente mesmo as crianças mais “velhas”. Claro que há exceções, mas, o que as pesquisas por todo o país nos mostram é que as escolas de ensino fundamental não estão preparadas ou não são adequadas para acolher as crianças e suas múltiplas maneiras de se expressar e de aprender.

As alterações legais que instituíram o ingresso obrigatório aos seis anos de idade no ensino fundamental, infelizmente, não foram seguidas de alterações na organização e funcionamento da escola.

Assim, mesmo para as crianças com seis anos completos, há um choque ao saírem da pré-escola e ingressarem no ensino fundamental: a rotina é muito mais rígida, exigindo-se um tempo de permanência em salas de aula muito mais longo; não há espaços adequados para a brincadeira, não há brinquedos e, tampouco, formação profissional para que se compreenda a brincadeira como forma mais apropriada para a aprendizagem infantil. Isto sem contar que em alguns sistemas ainda mantemos a sistemática de reprovação ano a ano, sem a instituição de sistemas de ciclos de aprendizagem ou progressão continuada, o que significa dizer que crianças, ainda aos seis anos de idade, ao final do primeiro ano escolar, podem ser reprovadas! Acrescente-se a isto as avaliações externas, vigentes pelo país a fora, e a pressão sobre professoras e professores quanto ao desempenho em tais avaliações, e temos uma ideia dos grandes desafios ainda em vigor em nosso sistema escolar.

Se, por um lado, conquistar um ano a mais de escolaridade, num país como o nosso, pode ter significado algo positivo, insisto que a saída não tinha que ser necessariamente com o ingresso mais cedo no ensino fundamental.

Universalizar a pré-escola, mantendo-se as crianças - todas – até que completassem sete anos na educação infantil, sempre nos pareceu mais interessante, do ponto de vista da própria criança.

Sabemos que há muitos problemas na organização do trabalho na educação infantil e que em nossa pré-escola também há práticas equivocadas. Entretanto, é possível afirmar que, de um modo geral, as rotinas são menos rígidas e ainda há espaço e tempo para o brincar.

Se, então, a estrutura da escola de ensino fundamental já era um problema para as crianças a partir do sete anos, se ela não se alterou e, mais grave, torna-se um problema ainda mais complexo quando incluímos crianças de seis anos, como admitir que as mais novas, com cinco anos, possam ingressar nesta etapa educacional?

A decisão quanto ao corte etário para ingresso no ensino fundamental acabou sendo judicializada e em alguns estados houve o entendimento de que seria direito da família ou ficaria a critério do sistema avaliar as condições para a matrícula de crianças que completassem seis anos após 31 de março, data determinada pelo CNE. Em alguns estados, contudo, as medidas judiciais foram derrubadas pelo Ministério Público Federal, prevalecendo, assim, a definição do CNE quanto ao corte etário.

A educação infantil no país cresceu em todos os sentidos e muito se conquistou em termos de direitos a serem garantidos. Nesta etapa o objetivo da educação é o desenvolvimento integral da criança e o trabalho pedagógico em creches e pré-escolas deve ser organizado por meio da brincadeira e das interações, conforme preconizado pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Os estudos no campo do desenvolvimento, em diferentes abordagens, informam sobre a necessidade da brincadeira, que deveria estar presente também no ensino fundamental, mas, é imprescindível para crianças até os seis anos de idade. Assim, entendemos que todas as crianças deveriam permanecer na educação infantil ao menos até completar seis anos, conforme definição do CNE.

Que outros assuntos se mostram urgentes para essa garantia?

Como mencionado, em alguns sistemas estaduais (caso de São Paulo e Paraná, entre outros), crianças que completam seis anos após 31 de março estão sendo matriculadas no ensino fundamental, ou seja, com cinco anos de idade. Na rede estadual paulista, além dos problemas já mencionados, temos a questão relativa ao número de alunos por sala. Assim, encontramos turmas de primeiro ano – com crianças de cinco – com até 40 alunos. Não é preciso ser especialista para supor o que decorre desta condição! Uma turma de 40 alunos, em qualquer idade – mesmo no ensino médio – é algo inadmissível! Não conheço nenhuma mágica pedagógica que possa levar uma professora ou professor a educar 40 crianças, entre cinco e seis anos, numa única turma, e nas condições a que já nos referimos.

Vende-se a ideia de que a universalização do ensino fundamental está garantida, porque praticamente todas as crianças na faixa etária estão matriculadas. Contudo, não podemos perder de vista a já antiga, mas, ainda primordial, discussão quanto à qualidade da educação que se oferece. Nessa discussão, a questão da idade é um elemento importante. As pesquisas sobre o ingresso aos seis anos e o ensino fundamental de nove anos de duração – e foram muitas desde 2007, um ano após a aprovação das leis relativas ao tema – informam sobre a não adaptação das escolas, dos currículos, da formação docente. Informam, ainda, sobre como as crianças têm sentido negativamente os reflexos da rigidez das rotinas, da falta de espaço, tempo e materiais para brincar. Elas informam, ainda, como professoras e professores têm adoecido diante das condições precárias e de crianças que “não param quietas” - sim, porque apesar de todas as limitações de espaço e tempo, as crianças resistem, elas brincam, falam, movimentam-se. Conforme afirmei em trabalho apresentado na 33ª Reunião Anual da Anped, em síntese, podemos dizer que “os maiores desafios que se impõem neste momento dizem respeito ao direito das crianças de brincarem, mas, também, de aprenderem. É fundamental que se supere, pois, a oposição entre o brincar e o aprender nessa faixa etária. Seja na educação infantil, seja no EF, cabe aos sistemas, e não isoladamente à escola e aos professores, promover as condições necessárias à garantia desses direitos.” (CORREA, 2010, p.15)

Seria necessário, portanto, não apenas garantir o corte etário definido pelo CNE, como incidir para que os sistemas façam as adaptações necessárias e recomendadas pelo próprio MEC, à época das mudanças legais quanto à duração do ensino fundamental. Tais adaptações se referem ao próprio currículo, mas, também à organização e à estrutura da escola, o que depende, por sua vez, de mudanças nos próprios sistemas de ensino.

Entramos, aqui, na questão do financiamento, pois como se sabe, os recursos disponíveis, ainda que possamos dizer que em alguns casos são mal administrados, de um modo geral são insuficientes.

O Fundeb não tem sido suficiente e por isso há alguns anos diferentes movimentos no campo da educação têm defendido a ampliação de recursos por meio do Caqi e do Caq, bem como por meio de recursos do pré-sal. Todavia, em 2016 temos vivido um golpe que se aprofunda a cada dia, com perdas e mais perdas em termos de direitos. A PEC 241, agora 55 no senado, é a representação mais clara de que àqueles anseios e necessidades para se avançar na qualidade educacional brasileira, agora se soma a necessidade de lutar para que não se perca o que foi conquistado até aqui. Mas, a resistência e a luta também estão presentes. Quem é da educação sabe que sem elas, nenhum passo é dado.

CORREA B. Ensino fundamental de nove anos: análise de uma experiência no interior do estado de São Paulo. 33ª Reunião Anual da Anped. Caxambu, MG. 2010 Disponível em: http://33reuniao.anped.org.br/33encontro/app/webroot/files/file/Trabalho...