30 anos de Educação de Jovens e Adultos em Porto Alegre. Até quanto? Até quando for necessário! | por Liana Borges

por Liana Borges

*Professora aposentada da Rede Municipal de Porto Alegre. Doutora em Educação, coordenou a EJA em POA, entre os anos 1989 e 1998, e no Governo do RS, de 1999 a 2002. Participa do Fórum Estadual de EJA desde sua criação – 1996, e é membro da Comissão Nacional de EJA, instância constituída pelo MEC, representando os Movimentos Sociais.

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Trinta anos de Educação de Jovens e Adultos em POA, certamente uma das políticas públicas dirigida às pessoas acima de 15 anos mais longevas do país.

Com o apoio de Olívio Dutra, prefeito entre os anos 1989-1992, acatando sua sugestão, as primeiras turmas foram organizadas nos locais de trabalhos em que se concentravam nossos colegas servidores não alfabetizados – operários de obras e da limpeza urbana. Olívio foi ousado, pois liberou-os, por decreto, duas vezes na semana, sete horas semanais, para que buscassem as salas de aula e passassem, desta forma, a ter o direito à educação garantidos.

Paulatinamente, inclusive enfrentando a resistência de parte da Rede Municipal de Educação (RME), fomos abrindo turmas de EJA à noite, em escolas municipais. No centro da cidade, no Mercado Público, nos três turnos, ineditamente, forjamos o que hoje é o Centro Municipal de Educação de Trabalhadores Paulo Freire (CMET).

Inicialmente de forma empírica, mas com o passar dos meses e anos, a partir de estudo, pesquisa e elaboração teórico-prática, construímos, coletivamente, uma proposta político-pedagógica que se tornou referência nacional e internacional.

Para tanto, realizamos um conjunto de movimentos que marcaram essa história: inúmeras publicações sobre a EJA; concursos públicos específicos; organização de dezenas de espaços de formação continuada, inclusive com convidados, do país e de outras localidades, de renome inquestionável, – Carlos Rodrigues Brandão, Moacir Gadotti, João Francisco de Souza, para citar alguns. O ano de 1995, com a presença de Paulo Freire, em congresso que contou com a presença de educandos e educandas da EJA, debatemos sobre o sentido da EJA enquanto processo de emancipação das classes populares e de elemento-chave para transformação das condições de vida do povo excluído.

Passados quase 30 anos, a EJA em Porto Alegre, pela primeira vez, experimenta o que é regra no país – o descaso com a modalidade, pois, apesar da Educação ser direito de todos, independentemente da idade, deveremos, constantemente, reafirmar que tanto a Constituição Federal de 1988, a LDB 9394/96 e o Plano Nacional de Educação (PNE - Lei 13.005/2014), asseguram que o lugar das pessoas com 15 anos ou mais é na escola.

No entanto, permanece a dicotomia entre a educação das crianças e adolescentes versus a EJA, e isso demonstra que a maior parte dos gestores, e até mesmo da sociedade, não reconhece que a Educação é Direito. Da mesma forma, desconhecem o impacto da escolarização de jovens, adultos e idosos no cuidado das crianças, a importância da EJA na redução dos indicadores de violência, em especial de meninos negros, bem como na construção de novos projetos de vida das mulheres, dos idosos e das pessoas deficientes, por exemplo.

Outro argumento recorrente, e atualíssimo, é de que não há demanda para EJA, contudo, está previsto no Plano Municipal de Educação de Porto Alegre (PME - Lei nº 11.858, de 25 de junho de 2015), nas estratégias 8.4 e 8.5, que a Secretaria Municipal de Educação (SMED) deve, respectivamente, realizar matrícula permanente, fazer ampla chamada pública e realizar censos para localizar o público da EJA que está fora da escola.

Sobre estes aspectos, identificamos não somente o descaso do governo municipal, mas, e sobretudo, a ilegalidade dos atos impostos pela SMED quando, em meados deste mês, suspende as matrículas nas escolas que têm EJA e indica que as mesmas sejam feitas apenas no CMET, de maneira centralizada, obrigando que os interessados se desloquem dos bairros periféricos para a região central da cidade.

A centralização das matrículas tem várias consequências avassaladoras, mas a principal delas é a de manipular a realidade e esconder a demanda para, com isso, fechar turmas e escolas. Todavia, na contramão, enfrentamos esta falácia com dados concretos e oriundos do IBGE/Censo 2010 e de estudos realizados pelo  Núcleo Interdisciplinar de Ensino, Pesquisa e Extensão em Educação de Jovens e Adultos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - NIEPE-EJA/UFRGS.

No que se refere ao analfabetismo, em 2010, Porto Alegre tinha uma taxa de 2,27% percentual, aparentemente irrelevante, porém, são mais de 26 mil pessoas acima de 15 anos que não sabe ler e escrever. Na estimativa em 2016, conforme o NIEPE-EJA/UFRGS, este número seria de quase 23 mil pessoas.

Refinando mais um pouco esses dados, inclusive para contribuir com a SMED na realização da Chamada Pública e do Censo, este mesmo estudo aponta como se dá a distribuição desse indicador por bairro, considerando o Censo 2010.

À título de ilustração, alguns dos bairros que concentram maior demanda são: Bairro Bom Jesus - Vila Mato Sampaio - Divinéia e Fátima -, com 638 moradores, e isto representa uma taxa de 7,62%; Bairro Santa Tereza - Vila Cruzeiro do Sul, são 470 de pessoas não alfabetizadas, ou seja, são 6,72%.

Quanto ao Ensino Fundamental, Porto Alegre, em 2010, tinha mais de 298 mil pessoas (26%) que não completaram este nível de ensino. Se assumirmos a estimativa levantada pelo NIEPE, este número passa para 312.875 pessoas. Levando em consideração somente o Bairro Bom Jesus, são 784 jovens entre 15 e 17 anos; 888, de 18 a 24 anos; com mais de 25, são 5.479, portanto, a demanda potencial é de 7.151 pessoas, mais do que o atual número de matrículas da EJA.

Por fim, se somarmos toda demanda levantada no Censo de 2010, o governo municipal tem o desafio de garantir o Ensino Fundamental para mais de 300 mil pessoas. Caso todos se deslocassem para o CMET, o prédio precisaria ser ampliado em milhares de vezes, pois comporta, mais ou menos, mil estudantes!

Outro argumento muito utilizado pelos gestores que não assumem a EJA como política pública a ser assegurada pela esfera municipal/ensino fundamental, é o da relação custo-benefício, ou, ainda, “a evasão da EJA é elevada”. Sobre isso, também na perspectiva de colaborar com a gestão da capital do RS, que já foi fonte de inspiração para tantos municípios, apresentamos as metas do PME relativas à EJA.

A meta 5 (universalização da educação na faixa dos 15 aos 17 anos), a meta 8 (elevação da escolaridade média da população do campo, mais pobres e negros, entre outros, de 18 a 29 anos), a meta 9 (elevação da taxa de alfabetização) e a meta 10 (ampliação da oferta de matrículas de EJA na Educação Básica) devem servir de estímulo e, mais que isso, de pressão, para que a população se empodere e busque assegurar, até mesmo nas instâncias da justiça, vaga na rede municipal de ensino.

A evasão na EJA, para quem estuda o tema, resulta de um conjunto de elementos, haja vista que o público desta modalidade está no mundo – trabalha ou busca trabalho, tem família, tem vida social, tem dificuldades diversas e está inserida em contextos sociais adversos e desprovidos de políticas sociais. No que concerne ao contexto escolar, cabe, sim, à SMED garantir a formação continuada semanal aos educadores e educadoras da EJA, na escola ou não, como ocorreu ao longo desses 30 anos, mas que foi revogada, recentemente, pelo autoritarismo do titular da pasta.

Além disso, em consonância com estratégia 8.6 do PME, à secretaria cabe pensar em outras formas de organização da oferta de EJA – novos locais (e não polos), outros horários (no diurno e vespertino e até em dias diferenciados), bem como a oferta de profissionalização integrada à escolarização.

A EJA em Porto Alegre está em xeque! De um lado, o Direito à Educação ameaçado, em que milhares (quase 7 mil) de estudantes matriculados não sabem se concluirão os estudos e, se sim, em qual condição. Os outros milhares, não têm consciência dos seus direitos. Do mesmo lado, 366 professores e professoras da EJA, muitos com larga experiência na temática, alguns que chegaram recentemente, mas todos com o futuro da carreira na corda bamba. Do outro lado, o governo municipal, que trata a EJA, e as demais políticas educacionais, com autoritarismo, sem diálogo e com truculência.  

A EJA faz parte da história de Porto Alegre, da vida de centenas de milhares de pessoas e continuará a ser referência no país. EJA, até quando? Até quando for necessário!
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*Ano: 1989. Fiz parte de um grupo pequeno de militantes da Educação Popular, vinculadas aos movimentos sociais ou às redes de educação estadual e municipal, utopicamente formularam as bases iniciais para a elaboração de uma proposta de trabalho muito mais de forma