PNE, a BNCC e as ameaças à democracia na educação

                                                                                                                                    ARTIGO DE OPINIÃO                                                                                                      

                                                                                                       PNE, a BNCC e as ameaças à democracia na educação

Hilda Aparecida Linhares da Silva Micarello[1]
Isabel Cristina Alves da Silva Frade[2]

A Base Nacional Comum Curricular e seu processo de elaboração integram 04 das20 metas do Plano Nacional de Educação 2014-2024, regulamentado pela lei 13.005 de 25 de junho de 2014 e sancionado, sem vetos, pela presidente da república Dilma Roussef. Com base no previsto no PNE, a Secretaria de Educação Básica do MEC deu continuidade às ações de elaboração da BNCC no primeiro semestre de 2015, reunindo associações científicas representativas das diferentes áreas do conhecimento, o CONSED e a UNDIME em torno do objetivo de produzir uma primeira versão do texto da BNCC, a ser submetida a um amplo processo de consulta pública.

O processo de produção da BNCC e a legislação

No campo educacional, há um processo dinâmico em que ações levam à conquista de direitos que se tornam leis. Essa dinâmica político-social, numa sociedade republicana de direitos, dá legitimidade aos processos de decisão sobre metas a serem alcançadas. Assim compreendido, o intenso debate nacional sobre a BNCC, no decorrer de 2015 e 2016, já estava previsto na Constituição Federal, na Lei de Diretrizes e Bases, e depois viria a ser reafirmado nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica. Todas essas legislações e documentos complementares foram desenvolvidos num momento em que a sociedade brasileira aspirava e praticava a democracia, haja visto que a própria legislação vigente garantia a  liberdade de ensinar, o respeito às diferenças  e indicava os direitos essenciais a serem assegurados pela educação. Quase vinte anos após a promulgação da LDB, como parte do esperado debate, foi produzido o  Plano  Nacional de Educação  que levou ao  estabelecimento de   metas relativas à Base Nacional  Comum Curricular.  Interpretando estes interesses e lutas, foi construída uma  proposta de BNCC – em sua primeira e segunda versões. Tal processo foi balizado pela ampla participação da sociedade na produção do Plano Nacional de Educação e pelo diálogo com grupos que trabalham com a educação e com a pesquisa  educacional .

Decisões sobre currículo ocorrem num campo de lutas e disputas, mas aqueles que nos envolvemos na elaboração dessas duas versões do documento tínhamos, como horizonte, uma visão de que os direitos sociais, políticos e éticos e à formação integral dos sujeitos seriam o norte de seu processo de construção e que, sendo a base um parâmetro para inspirar currículos, esta deveria se pautar na  busca pela equidade, no acolhimento à diversidade e  nos acordos  e documentos que já tinham sido produzidos para a Educação Básica.

Divulgação da BNCC , contexto político e consulta

Em setembro de 2015 uma primeira versão do documento foi divulgada no Portal da Base Nacional Comum - http://basenacionalcomum.mec.gov.br/#/site/base, espaço criado com o objetivo de divulgar as ações relacionadas à elaboração da BNCC e colher contribuições de diferentes setores da sociedade e dos cidadãos que desejassem participar do processo consultivo.

A divulgação dessa primeira versão da BNCC se deu num contexto político no qual se acirravam as disputas que levaram ao processo de impeachment da presidente Dilma Roussef. O tema do currículo foi intensamente pautado pela grande mídia e predominou uma discussão em que se evidenciaram posicionamentos conservadores, como a crítica ao reposicionamento da gramática no ensino de L.P., proposto pelo documento, as críticas à concepção que guiou a formulação da proposta de História e uma compreensão de que modelos internacionais de elaboração de currículos, ainda que bem realizados, pudessem pautar uma concepção de currículo para o Brasil. Aconteceram, com relação ao documento, ao lado de manifestações perfeitamente legítimas de discordância quanto a seu conteúdo, outras de caráter deletério, que visavam a desqualificar seu processo de elaboração e os participantes desse processo, escolhidos de modo a se garantir, nas várias etapas de elaboração, a representação de diversas entidades: das redes estaduais e municipais, de universidades e associações científicas,  de diversos fóruns de discussão ligados à educação, do Conselho Nacional de Educação.

Com o intuito de acolher as críticas e propostas de alteração, visando a qualificar o documento, a Secretaria de Educação Básica promoveu dezenas de reuniões: com associações científicas representativas das áreas de conhecimento, identificadas no expediente que acompanha a segunda versão da BNCC, com pesquisadores das universidades, com representantes dos movimentos sociais, por meio da SECADI.  Com o apoio do Consed e das Undimes, foram constituídas Comissões Estaduais, com participação das universidades, das redes e de diferentes movimentos sociais, que tiveram a atribuição de fomentar o debate sobre a primeira versão do documento em estados e municípios. As Comissões Estaduais se tornaram parceiras fundamentais no processo de elaboração da segunda versão do documento. Foram elas as responsáveis por espraiar o debate sobre a Base por todo o território Nacional, envolvendo professores, gestores e comunidades nesse debate. Como fruto do trabalho das Comissões Estaduais, o portal da BNCC colheu, de setembro de 2015 a março de 2016, mais de 12.000.000 de contribuições à primeira versão da BNCC.

A consulta pública foi um parâmetro para reconhecer se as opções feitas no documento preliminar tinham boa ressonância na sociedade e   um meio de qualificá-las e alterá-las. Diferentes vozes foram ouvidas, tendo em vista os debates e os pareceres de vários leitores críticos, para além do estabelecido na metodologia do Portal da Base. O processamento das alterações exigiu um trabalho técnico de apuração  de recorrências mas, sobretudo, um trabalho minucioso de  interpretação  pedagógica e política sobre o que indicavam as sugestões. Os encaminhamentos desse trabalho se encontram descritos e registrados no Portal da Base e oferecem rico material para pesquisas futuras.

O conjunto das contribuições advindas das diferentes frentes de debate e das diversas instâncias e formas de contribuição levaram à elaboração da segunda versão da BNCC, entregue ao Conselho Nacional de Educação, ao Consed e à Undime, em maio de 2016.

Como se pode observar, a despeito de todas as polêmicas que envolveram a concepção do que seria uma BNCC no campo educacional, sua finalidade e conteúdo,  a construção do  documento foi  conduzida rigorosamente segundo o que se defendia no Plano Nacional de Educação, mediante um processo que  envolveu várias instâncias e atores, com destaque ao papel dos estados e municípios no processo de discussão do documento. O mapa de acesso a essas contribuições, disponível no Portal da BNCC, não deixa dúvidas quanto ao envolvimento dos entes federados no debate.

A tentativa de deslocamento das decisões sobre a educação: das instâncias legítimas para o Congresso Nacional

Paralelamente à entrega da segunda versão da BNCC, no início de maio de 2016, a crise política se acirrava e os indícios de que um golpe contra a democracia estava sendo urdido, no Brasil, se faziam claros.  Ecos desse processo se faziam sentir, com relação à BNCC, em iniciativas de deslocar o debate e deliberação sobre o documento das instâncias legitimamente constituídas e reconhecidas pelo PNE, como aquelas responsáveis pela condução do processo – o Ministério da Educação e o Conselho Nacional de Educação – para o Congresso Nacional.

Esta proposta foi concretizada em fevereiro de 2016, quando se apresentou, à Câmara dos deputados, o Projeto de Lei Nº 4.486, de 2016  que “Altera a Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014, Plano Nacional de Educação - PNE, visando que a Base Nacional Comum Curricular – BNCC, mediante proposta do Poder Executivo, seja aprovada pelo Congresso Nacional.”, projeto de autoria do  deputado ROGÉRIO MARINHO.

Como parte dessas iniciativas, realizou-se, em 31 de maio de 2016, um Seminário, na Câmara dos Deputados, com o objetivo de discutir a BNCC. O referido Seminário, que teve repercussões nos meios acadêmicos, dados os posicionamentos, especialmente do Movimento Escola sem Partido, que nele se manifestaram, foi parte do processo de tramitação do Projeto de Lei Nº 4.486.

Em função deste contexto, a equipe que participou da elaboração da BNCC divulgou, imediatamente, uma nota denominada “NOTA DE ESCLARECIMENTO E MANIFESTAÇÃO DE POSICIONAMENTO DO COMITÊ ASSESSOR E EQUIPE DE ESPECIALISTAS QUE ATUARAM NA ELABORAÇÃO DA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR”, alertando sobre os riscos de se perder o caráter democrático, de consulta e produção coletiva do documento que tínhamos conseguido instituir até o momento em que foi divulgada a segunda versão.

Nos últimos dias de agosto, o processo de tramitação do referido projeto de Lei avançou e foi divulgado o parecer do deputado Átila Lira sobre o PL de Rogério Marinho.  Invocando, dentre outros, argumentos de ilegalidade, resultados do PISA, e interpretando a atual versão  da BNCC como  doutrinária e sem base científica e pedagógica,  o  relator tenta retomar discursos e prescrições de pessoas como João Batista de Oliveira e  Ilona Becskeházy ,  evidenciando o tipo de argumentação que está por vir e  a mudança de concepção sobre o que seria a BNCC, pois há, no parecer, uma ideia de conteúdos mínimos e  programas fechados que serviriam, prioritariamente,  para a avaliação e comparação de resultados entre países. Para o relator do parecer do referido projeto de Lei, se a BNCC envolve direitos, o tema deveria ser deliberado na Câmara, e não com a sociedade. 

Leia-se, a seguir, o trecho final do parecer:

“Após todas as considerações e análises que apresentamos, é possível concluir que o processo adotado até o momento para a construção da BNCC não é adequado e está muito distante das melhores práticas científicas e pedagógicas, além de possuir indícios de ilegalidade. Os documentos apresentados invadem, em muitos momentos, a esfera de competência do Poder Legislativo ao determinar direitos. O documento possui um claro viés doutrinário, falhando em ofertar a pluralidade do pensamento e das teses científicas. Isso se explica pela ausência de pluralidade entre aqueles que escreveram o documento. A pluralidade necessária não se encontra no grande número de pessoas que trabalharam direta ou indiretamente na elaboração do resultado final, mas na participação de diferentes correntes do pensamento científico. O currículo comum que se almeja implementar no Brasil deve ser construído em conjunto com Estados, Municípios e o Distrito Federal, sob a pena de se desrespeitar a autonomia dos entes federados. Portanto, imprescindível que os representantes desses entes participem ativamente dessa construção. É necessário levar esses debates ao espaço democrático apropriado para a sua discussão: o Congresso Nacional. Se o MEC pretende criar direitos com a BNCC, mais um argumento favorável para que o documento seja apreciado e chancelado pelo Congresso Nacional.  Dessa maneira, e diante de todo o exposto, voto pela APROVAÇÃO do Projeto de Lei nº 4.486, de 2016.       

Relator: Deputado ÁTILA LIRA “

Como se pode observar, o objetivo do PL é alterar o PNE, no que diz respeito à BNCC, instituindo a Câmara dos Deputados como instância com poderes para deliberar sobre o processo de elaboração da Base e sobre a versão final do documento. Para além das tentativas de desqualificar as equipes envolvidas no processo de elaboração do documento, a realização do Seminário da Câmara, e o Projeto de Lei que ensejou o referido Seminário, representam uma tentativa de silenciar as vozes que se manifestaram sobre o documento, pela desqualificação do processo de sua elaboração sob argumentos calcados numa inconsistente e interessada defesa de um cientificismo neutro (e neutralizante). Esses são os argumentos de movimentos que visam ao golpe na Educação, na escola, nos professores e na formação dos estudantes. A ideia de uma racionalidade técnica, esvaziada de conteúdo político, que está no parecer do relator, não corresponde ao processo e ao conteúdo da BNCC, que foi tornado público à sociedade brasileira, como documento que, em sua segunda versão, se abre a todas as críticas que ainda podem e devem ser feitas.

Se o referido Projeto de Lei for aprovado na Câmara, temos sérias ameaças a um processo    que, conforme aqui se descreveu, envolveu a   participação de várias instituições científicas, universidades, professores da escola básica, pacto interfederativo com UNDIME e CONSED e as ações do CNE. É importante lembrar que, ao mesmo tempo em que esse projeto tramitava na Câmara, os 27 estados da federação realizaram seminários estaduais, ao longo dos meses de julho e agosto, para discutir a segunda versão da Base e produzir relatórios com indicações de revisão para a versão final do documento, a ser encaminhada ao CNE. Esses seminários mobilizaram mais de 8.000 professores da educação básica por todo o país, dando continuidade ao intenso debate sobre a BNCC. Em última instância, o precedente, criado pelo Projeto de Lei 4.486 abre espaço para desmontar o próprio PNE.  A democracia está em risco!

[1]Professora da Universidade Federal de Juiz de Fora, coordenadora pedagógica da BNCC 
[2]Professora da Universidade Federal de Minas Gerais, coordenadora institucional e assessora de Língua Portuguesa da BNCC