Ocupações: políticas, resistências e invenções curriculares

Maria Luiza Süssekind
Coordenadora do GT 12 Currículo/ANPEd
Professora do PPGEdu/UNIRIO
Grupo de Pesquisa: Práticas Educativas e Formação de Professores/GPPF/CNPq

Raphael Pellegrini
Mestrando do PPGEdu/UNIRIO/Bolsista CAPES

Revertendo as tendências democratizantes e de valorização do local e da diferença presentes em parte significativa da legislação e políticas para educação superior e básica públicas nos últimos anos – e que portanto ampliaram possibilidades e experiências com, nas e fora das escolas que temos identificado como emancipatórias (Oliveira, 2012) –, vimos assistindo à conquista crescente de espaço na administração dos sistemas e redes públicas de educação no Brasil pelos representantes dos interesses do grande capital (Macedo, 2014), o que identificamos como parte de um tsunami neoliberal global de fortes tendências conservadoras (Süssekind, 2014c) que inspira retrocessos (inclusive legais) em todos os campos da sociedade, entre eles uma espécie de reformismo na educação. Este reformismo de inspiração tecnicista (Freitas, 2014) se utiliza de políticas de currículo e avaliação, como a BNCC (Base Nacional Comum Curricular, MEC, 2016), que consideram conhecimento algo que não enxerga os chãos das escolas (ANPED, 2015), abrindo espaço à modelização da educação em todos os níveis, como defende o Movimento pela Base Nacional Comum, e favorecendo a privatização dos sistemas públicos e a divisão hierárquica entre administradores e executores da educação, desvalorizando o trabalho docente (Idem), como já se realiza plenamente nas políticas praticadas nas redes municipal e estadual no Rio de Janeiro.

Nessas ondas navegam também os movimentos de inspiração higienizadora que pregam a desideologização dos currículos e práticas escolares, como o Escola Sem Partido. Com sentidos e formas de apagamento da diferença, entendem a democracia como a ausência (ou eliminação) do conflito. Assim, o reformismo apoia-se num discurso que nega o direito e a liberdade de ensinar e aprender (Art 3º; LDB, 1996) ao objetificá-lo, escrevendo o que passa a ter todos e, por isso, nenhum sentido, o currículo passa a ser uma escrita sobre o nada (Derrida, 2011). Assim, dividindo a sociedade, as escolas, os currículos, o trabalho docente e as práticas de conhecer de modo abissal – jogando para o abismo conhecimentos considerados INválidos[1] –, a “pretensão dos produtores de informar uma população, dar forma as práticas sociais” (Certeau, 1994, p. 260) surpreende-se com as resistências, as astúcias, as REexistências e coexistências (Santos, 2008, p. 14) exemplificadas nas ocupações nas escolas estaduais no Rio de Janeiro e em São Paulo. Dizendo aos administradores dos sistemas públicos de educação que há mais nas escolas do que a preparação para os testes padronizados, evocando seus direitos à uma escola republicana, Carlos Ramiro vaticina:

A ocupação foi uma coisa necessária... os estudantes tiveram que fazer. Não tiveram saída... Nossa única opção foi ficar dentro da escola. E assim eu queria deixar o recado de que a gente percebeu que infelizmente nós temos que cutucar a onça com a vara curta para que algo seja feito. E a gente entendeu que os manifestos e a ocupação radical, isso está dando um resultado e se infelizmente for a única forma, vamos usá-la, eu peço ao governo para entender. É uma forma de resistir, de luta pela educação... se tiver que ocupar a gente ocupa. (Carlos Ramiro, EE Diadema/Midia Ninja, maio de 2016).    

A ocupação é a (im)possibilidade da escrita única, que nunca pode ser REescrita porque é prescrita. Nas ocupações, os jovens trazem suas escritas múltiplas e diversas que recusam jogar o jogo do enigma onde não podemos decifrar a nós mesmos, pois o que se prevê é uma resposta única, uniformizada, padronizada. As ocupações nos parecem ser uma interessante imagem para pensarmos mais uma vez (Süssekind, 2014a, 2014b; Süssekind; Pinar, 2014) sobre as políticas curriculares propostas nos currículos padronizados mínimos-máximos propostos por secretarias municipais, estaduais e pela proposta de base nacional defendida pelo MEC. Em tais ações de tentativa de padronização curricular, o conceito de currículo e de comum assumidos parecem se constituir a partir de uma perspectiva de decifrar uma escrita não escrita, uma escrita de entendimento único. Dessa forma, decifrar assume o sentido utilizado comumente, inclusive no campo da ciência, de compreender uma realidade apriorística a partir de alguma teoria, ideia ou ferramenta poderosa.

Defendendo que currículos são espaçostempos de criação e tessituras de conhecimentos em redes, a partir de Nilda Alves (2008), ou, ainda, que são as conversas complicadas de William F. Pinar que quase independentemente das disciplinas e planejamentos versam sobre cosmopolitismos, historicidades, subjetividades, alegorias e silêncios, argumentamos que a proposta de unificar currículos como forma de garantir o direito de aprendizagem (PNE/2014[2]) por meio de objetivos elencados numa base (BNCC) prevê o controle dos processos de conhecer e do conhecimento produzido é uma negação a esse direito.

Assim, as ocupações de escolas por estudantxs no Rio de Janeiro e São Paulo desafiam, resistem e respondem a essas políticas de controle e clamam pelo direito que a LDB lhes garante de aprender na diferença, participar tendo sua diferença respeitada (Santos, 2007). Produzir um currículo que não é currículo, mas sim papel, lista, prescrição de significados, como existe no estado do Rio de Janeiro, é propor aos professorxs que negociem com seus estudantes a criação de conhecimentos a partir de uma codificação arbitrária de significados cobrados em testagens externas padronizadas. A escrita nunca escrita que deve ser decifrada no currículo como base (BNCC) é um currículo de previsibilidade, prescrição e controle de significados, sem vínculo com os currículos dos pensadospraticados nos cotidianos (Oliveira, 2012, p. 11) pelos múltiplos sujeitos das escolas. Por mais prescritivo que seja o documento curricular, e a base projeta altíssimo nível de prescrição, controle e responsabilização dos professorxs pelos resultados, pensamos que, nas conversas complicadas que são os currículos, os conhecimentos, os documentos curriculares trazem escritas sobrepostas, reutilizadas. São currículos-palimpsestos que, como pergaminhos, se decifram nas redes de conhecimentos e de tessitura dos conhecimentos fazendo o caminho no andar (Alves, 2008, p. 16). Em conversas complicadas, inventam conhecimentos nos cotidianos escolares, tratando nossas heranças com amor e justiça (Skliar, 2008), mas não como autoridades escriturística (Certeau, 1994, p.270). É a partir dessa proposta de complexidade e diferença que pudemos compreender as ocupações como reinvenções curriculares nos cotidianos escolares em uma conversa sobre “os riscos do pensamento único” com os estudantxs da ocupação do Colégio Estadual Central do Brasil/RJ.

                                                      
                                                                                                                                                                                    Foto Eduardo Prestes; Abril/2016. 

[1] Alves (2001) sugere que as pesquisas com os cotidianos precisam empregar em muitos momentos a justaposição, escrita e estetização diferenciada de palavras a fim de buscar reinventar as palavras, já que a língua[gem] prescrita não alcança acessos aos sentidos do vivido.

[2] No documento original: “(...) o Ministério da Educação, em articulação e colaboração com os entes federados e ouvida a sociedade mediante consulta pública nacional, elaborará e encaminhará ao Conselho Nacional de Educação – CNE, até o 2o (segundo) ano de vigência deste PNE, proposta de direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento para os (as) alunos (as) de ensino médio, a serem atingidos nos tempos e etapas de organização deste nível de ensino, com vistas a garantir formação básica comum”. Nesse mesmo material: “pactuar entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, no âmbito da instância permanente de que trata o § 5o do art. 7o desta Lei, a implantação dos direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento que configurarão a base nacional comum curricular do ensino médio”. 

Referências Bibliográficas

ALVES, Nilda. Sobre movimentos das pesquisas nos/dos/com os cotidianos. In: OLIVEIRA, Inês B.; ALVES, Nilda. A Pesquisa nos/dos/com os cotidianos das escolas sobre redes de saberes. Rio de Janeiro: DP et Alii, 2008.
ANPED. Ofício n.º 01/2015/GR: Exposição de Motivos sobre a Base Nacional Comum Curricular. Rio de Janeiro: Anped, 2015. Disponível em: <http://www.anped.org.br/sites/default/files/resources/Of_cio_01_2015_CNE.... Acesso em: 07 maio 2016.
BRASIL. Lei nº 9394, de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Lei Nº 9.394, de 20 de Dezembro de 1996.. Brasília: Diário Oficial da União, 20 dez. 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm>. Acesso em: 07 jul. 2016.
BRASIL. Plano Nacional de Educação PNE 2014-2024. Brasília: Inep, 2015.
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular: segunda versão. Brasília: MEC/SEB. 2016.
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano 1: As artes de fazer. Rio de Janeiro: Vozes, 1994.
DERRIDA, J.. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 2011.
FREITAS, L. C. de. Os reformadores empresariais da educação e a disputa pelo controle do processo pedagógico na escola. Educação & Sociedade, Campinas, v. 35, n. 129, p.1085-1114, dez. 2014.
MACEDO, Elizabeth. Base Nacional Curricular Comum: novas formas de sociabilidade produzindo sentidos para educação. Revista e-Currriculum, São Paulo, v. 12, n. 03, p.1530-1555, dez. 2014.
OLIVEIRA, I.B. O Currículo como criação cotidiana. Petrópolis: DP et Alli, 2012.