Ocupa CRJ: “Onde a Quebrada se Junta”. # CRJ sem Juventudes não rola!

Sebastião Everton[1]
Juarez Dayrell[2]

“E o elefante branco toma vida própria
e começa a andar. Riqueza”.

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Em Belo Horizonte, centenas de jovens ocuparam o Centro de Referência de Juventude de BH (CRJ), em maio de 2016, gerando uma experiência muito rica. Propomo-nos aqui a descrever parte deste processo. 

A construção do Centro de Referência da Juventude (CRJ) é uma demanda histórica de movimentos juvenis da Região Metropolitana de Belo Horizonte. O espaço existe desde 2014, mas nunca funcionou publicamente. Estima-se que foram gastos 14 milhões de reais na obra do prédio, que tem potencial para abrigar diversas atividades culturais, educativas, esportivas, de formação profissional e participação política. A gestão do equipamento é feita pela Prefeitura de Belo Horizonte, em parceria com o Governo de Minas Gerais, sem diálogo efetivo com a sociedade civil. Após inúmeras tentativas frustradas de construção democrática sobre os usos do CRJ, as juventudes resolveram ocupá-lo na noite de 23 de maio de 2016, em uma decisão unânime tomada em reunião extraordinária do Conselho Municipal de Juventude de BH. Neste dia cerca de setenta jovens dormiram no prédio e passaram a assumir a gestão do espaço. A principal reivindicação das/os jovens ocupantes foi para abertura imediata do CRJ com uma gestão compartilhada, incluindo as vozes plurais das juventudes que vivem na Grande BH.  Duas palavras de ordem dominavam: “#CRJ sem juventude não rola” e “Nada de nós, sem nós.”.

                                                                     
                                                                                                                                                                      Foto: Paulo Filgueiras/EM/D.A Press

A ocupação

Nos primeiros dias a sensação era de medo, mas também de entusiasmo na certeza da rebelião que ali se instalava. Neste período houve conflitos com a Guarda Municipal, que entrava nas salas, no auditório, acendendo as luzes enquanto os ocupantes estavam dormindo, com práticas de revista vexatória ou mesmo tentando impedir a entrada de outros jovens na ocupação. A partir da primeira negociação com a prefeitura, os jovens passaram a gerir o espaço de forma autônoma.

A partir daí circularam no CRJ uma média de 300 jovens, sendo que dormiam uma média de 100 deles. A constituição dos ocupantes foi muito variada. Parte deles eram jovens de grupos, como aqueles ligados ao Forum das Juventudes ou mesmo à UNE, UMES  ou UJS, com uma participação mais estruturada; mas havia também os jovens autônomos, que vieram somar com os mais diversos sentidos: por influência de amigos; para sair da condição de trajetória ou moradia nas ruas; outros somente para dormir, etc. Alguns eram jovens trabalhadores, muitos deles em exercício durante o dia e dormindo lá à noite. Houve também os jovens em situação de rua, que souberam da ocupação, entraram para conhecer e acabaram ficando. Grande parte dos jovens eram produtores culturais independentes, muitos com vocação músical (DJ ,MC,) corporal (dançarinos, bboys) e demais expressões artísticas populares (poetas, grafiteiros, esportista de slackline, etc). Chamou a atenção a presença importante de ocupantes mulheres bem como a presença de jovens travestidos, demarcando expressivamente no corpo as marcas da resistência e a bandeira por diversidade de gênero e de orientação sexual.

Ocupando o espaço

Ao chegar no CRJ as pessoas já se encontravam diretamente no hall de entrada do prédio, onde havia uma mesa para controle de entrada e saída das pessoas que precisavam assinar uma lista. Controle que também foi deliberado ao longo da negociação com a prefeitura. No primeiro andar foi organizada uma sala de reuniões internas da ocupação,  com painel de propostas para programação. Seguindo o corredor havia a sala da comissão de comunicação, com computadores notebooks, moldens de internet emprestados, etc. Havia também um espaço para exposições, apropriado e ressignificado pelos jovens que fizeram dali um espaço para deixar seu pixo em folhas de papel A4 e outros desenhos. Uma área mais ampla, em formato de teatro de arena, foi transformado em pista de skype. E o auditório, ainda sem cadeiras e  todo revestido de carpete se transformou no dormitório. Vale ressaltar que pra o banho tinham apenas três chuveiros, no total, para atender a todos.

Na cozinha os ocupantes providenciaram panelas, fogão industrial e se revezavam para fazer as alimentações. As comidas eram pensadas a partir da diversidade de demandas, alguns eram veganos, outros vegetarianos, com outras variáveis, como no uso de açúcar e sal, chá e café, etc. Pela ausência de pratos e copos geralmente os jovens cortavam garrafas descartáveis ou caixas de leite para reaproveitá-las para este fim. Os alimentos eram doados ou comprados com dinheiro doado pelos apoiadores na cidade. Em média eram servidas 300 refeições diárias.

Em todos os lugares existiam mensagens sobre os sentidos de estar ali. Na frente do CRJ foram fixadas duas delas dizendo: “Fora Temer!” e outra “Fora Lacerda! seu governo é uma merda!”. As paredes foram coloridas com cartazes com informações sobre assembleia geral, com o painel de programação. Muitos deles dispensavam os “fiu-fius”, pediam respeito “às mina e às monas”, repudiavam violências e desrepeitos com os espaços e com pessoas. Outros pediam para não entrar com bebidas ou não usar maconha por ali.

Sobre a programação: mobilizações para apropriação do espaço:

A composição da programação e sua fluidez se deu no processo da ocupação. Inicialmente montou-se um painel na parede com diversas sugestões e contatos, ambos sugeridos ao longo das conversas, trocas e por meio de comunicações que advinham na página do facebook, nos grupos de whatsapp, dentre outros. Durante a ocupação, foram realizadas disputas de passinho, festa junina, ensaios de blocos de carnaval, saraus, shows com artistas conhecidos como o cantor Flávio Renegado, por exemplo. Também aconteceram as mais diversas oficinas tais como de pockets, de dread, de compostagem, slackline, oficina de pão, oficina de bambolê, flauta com cano PVC, aulas públicas com professores da UFMG e rodas de conversas sobre os mais diversos temas, tais como: racismo, movimetos juvenis em BH, diversidade sexual, o genocídio de jovens negros, machismo, etc. Foram realizados atos públicos como o Fora Temer, a acolhida da marcha da maconha que teve sua concentração em frente ao prédio, dentre outras.                                                                                           

De modo geral, o CRJ funcionou como um espaço multiuso, com vários eventos  acontecendo ao mesmo tempo e aproveitando toda a infraestrutura numa aparente confusão, mas num movimento dinâmico e, sobretudo, imbuído de intencionalidade. As regras vieram sendo construídas de acordo com as situações ou frente  às emergências, mas sempre com a  tônica do “controle da situação”. O modo de interação entre as pessoas também foi central para o acontecer das relações e para as mobilizações necessárias para manutenção da ocupação. O uso de tecnologias para registros foi fundamental para mediar conversas, para gravar situações de abuso de autoridade, mas também para registrar as bonitezas e os sentidos das experiências vividas pelos ocupantes.

O fim da ocupação

Depois de muitas idas e vindas e com a mediação do Ministério Público de Minas Gerais, a Prefeitura finalmente aceitou a negociação com os jovens a partir do dia 16 de junho, depois de 23 dias de ocupação. Envolveu a Subsecretaria da Juventude de Minas Gerais, Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, o Conselho Municipal da Juventude de Belo Horizonte, a Coordenadoria Municipal da Juventude, os integrantes da ocupação do Centro de Referência da Juventude, e seus advogados que acordaram a realização de um seminário de natureza deliberativa sobre a destinação e gestão compartilhada  do CRJ; a participação de representantes das juventudes no comitê gestor do CRJ, na ordem de 3/5 (três quintos) dos membros; inauguração e pleno funcionamento do CRJ dentro de 90 (noventa) dias, a contar da data da reunião e a revisão da programação das atividades/projetos a serem implementados no CRJ, a partir de chamamento público, por meio de edital desburocratizado, para possibilitar a ampla e democrática participação de todas as instituições e pessoas interessadas. A desocupação ocorreu no dia 20/06/2016.

A ocupação como uma experiência de aprendizado

A experiência da ocupação, na busca por liberdade e no encontro de suas contradições, foi um meio de aprendizados, sobretudo, sobre as formas de existir e negociar na vida pública. Podemos dizer que foi uma experiência no sentido dado por Larrosa Bondía (2002), ou seja, uma experiência em si irrepetível, algo que nos passou, nos marcou e que ficou na memória.  Favoreceu espaços e tempos para as relações, para lidar com as diferenças e refletir sobre os diferentes lugares sociais. Deslocou  os nossos pontos de vista e fabricou novas identidades no encontro com este universo de coisas. Deste modo, podemos afirmar que as identidades não ficaram anuladas ao longo da ocupação. A própria produção e fruição cultural contidas na programação foi um exemplo disso. Neste encontro dos jovens com suas ideias e sonhos o CRJ ganhou vida e aconteceu sem a presença de uma gestão pública. Além disso, muitos jovens nunca tinham tido relações com o poder público ou com espaços de deliberação democráticas, ou seja, este exercício contribuiu  para a construção de sujeitos políticos em suas múltiplas formas de diálogo que podem ser favorecidades e reformuladas. Contudo, acerca desta experiência, não podemos também cair numa espécie de romantismo, pois esta luta tem também um caráter de continuidade e está articulada a outras lutas de denúncias e anúncios por uma nova sociedade. 

O que fica disto tudo é a necessidade de radicalizar os processos  políticos para que vozes invisíveis dos jovens sejam ouvidas e se façam ecoadas. Neste sentido, a ocupação foi uma forma legítima, carnavalizada e dinâmica de participação política dos jovens. Por isso, apostamos em processos que lidem com o diálogo e contradição, pois é no cotidiano, no bojo da diversidade, que operamos com as transformações de sonhos. Desse ponto de vista, interpretamos que o CRJ veio se constuindo não somente como um lugar físico, mas também afetivo, experimental (de residências artísticas, de formas  de liderar, de modos de relacionar, de trocar e buscar novidades). Foi um movimento que conectou várias “quebradas”. Não se constituindo apenas como um “ajuntado” de pessoas, mas uma articulação de trajetórias pessoais e coletivas, de forças e desejos permeados por diversas relações de poder. Podemos dizer que o CRJ, neste período da ocupação, se constituiu como semântica da “quebrada”, cheia de estilhaços por seus conflitos políticos e relacionais, mas também como lugar de reverberação de novas e possíveis imagens à serem lidas em seus múltiplos ângulos. A luta por reconhecimento e por participação social  está hoje no bojo das principais questões trazidas pelos jovens. Neste sentido, a ocupação do CRJ é uma luta por reconhecimento de lugar, lugar social e simbólico, mas também de direitos dos jovens, principalmente daqueles das classes socialmente excluídas.

[1] Mestre em educação pela UEMG, integrante da  ONG Oficina de Imagens e Fórum das Juventudes da Grande BH.
[2] Professor da Faculdade de Educação da UFMG e integrante do Observatório da Juventude da UFMG