Marco Legal da Primeira Infância | Entrevista com Rosânia Campos (UNIVILLE)

 

 

 

 

 

 

Entrevista com Rosânia Campos, coordenadora do Grupo de Pesquisa em Políticas e Práticas para Educação e Infância - GPEI vinculado a Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE, instituição na qual trabalha no Programa de Pós-Graduação em Educação - Mestrado em Educação e nos cursos de graduação: psicologia e licenciaturas. A entrevista integra reportagem especial da ANPEd sobre a Educação Infantil.

 

Quais são as principais questões que envolvem a implantação do Marco Legal da Primeira Infância?

O Marco Legal da Primeira Infância (Lei N°13.257/16) foi comemorado por vários pesquisadores/as da área de educação infantil que reconheceram nessa lei um avanço na construção de uma lei que oportuniza a articulação intersetorial. No entanto, sob meu ponto de vista, sem desestimar o trabalho dos envolvidos no processo, penso que é importante discutirmos a lei, não seguindo o mérito de dicotomizar:  a favor ou contra, mas analisando-a no contexto de políticas públicas em um país que ainda possui tantos desafios na efetivação de suas leis. Seguindo essa perspectiva, considero mais urgente a definição de procedimentos para acompanhar a efetivação dos dispositivos legais que protegem e garantem os direitos das crianças já definidos no nosso país, como por exemplo, o cumprimento do preconizado na Constituição Federal, no Estatuto da criança e do Adolescente entre outros dispositivos legais. Considero ainda essencial pensarmos em um sistema de acompanhamento das políticas públicas, buscando acompanhar não apenas o momento de suas elaborações e implementações, mas também o que Steven Ball denomina de “contexto dos resultados ou efeitos” e “contexto de estratégia política”. Isso tanto em nível da pesquisa, quanto em nível de poder público e sociedade civil. Penso que uma tentativa desse acompanhamento foi definida no atual Plano Nacional de Educação, processo severamente ameaçado na atual conjuntura. Ainda seguindo essa lógica, o Marco Legal para não repetir o cenário histórico nacional, qual seja, termos as definições legais, mas não sua efetivação, implicará num Estado com compromisso no estabelecimento de políticas sociais, situação muito diferente no atual contexto, no qual observamos um processo severo de desmonte, do que ainda era frágil e tímido, Estado com maior papel social.  Ainda em relação ao Marco da Primeira Infância, e seguindo a lógica de análise de políticas, ao analisarmos o contexto de influência, e o contexto de produção novos elementos me inquietam, pois a Lei N°13.257/16 emergiu a partir de um Curso de Liderança Executiva em Desenvolvimento da Primeira Infância sistematizado pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, em articulação com Universidade de Harvard, Cambridge, MA, EUA, e destinado a gestores tanto públicos ou gestores de instituições sem fins lucrativos e/ou ONG´s. Entendo que isso já é um indicativo, posto que os estudos de Harvard e da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal possuem marcos teóricos específicos nas discussões voltadas para infância e sua educação. Tendo em vista os limites dessa escrita não é possível aqui discutirmos pontualmente alguns conceitos chaves presente no Marco Legal, e de defesa das pesquisas desenvolvidas nas instituições citadas. Entretanto, penso ser interessante observar, por exemplo, que, um teórico recorrentemente citado nas pesquisas desenvolvidas pelas instituições citadas, assim como, referido pelo então Deputado Osmar Terra, atual ministro do Desenvolvimento Social e Agrário do governo Temer, para justificar o Marco Legal da primeira infância é o economista James J. Heckman. Heckman, prêmio Nobel da economia, defende a educação para infância como uma estratégia econômica importante, apresentando numericamente essa conta. Se analisarmos as pesquisas de Heckman, é possível observar a forte referencia da Teoria do Capital Humano desenvolvida por Marshall.

Ao considerarmos esses aspectos, devemos nos lembrar de que a Teoria do Capital Humano toma a educação como o principal capital humano, logo, o processo educativo, como já discutido por Frigoto, é reduzido a função de produzir um conjunto de habilidades intelectuais, atitudinais e acumulações de conhecimentos necessárias a produção.

Desse modo, as diferenças individuais são justificadas economicamente tendo como fator a educação. Enfim, a pobreza não é compreendida como algo estrutural, mas como algo residual, fato observado em vários documentos dos organismos internacionais como Banco Mundial, UNESCO e UNICEF. A partir dessa lógica, a diferença, por exemplo, do número de palavras conhecidas entre as crianças de diferentes classes econômicas, é discutida pela incapacidade das famílias oportunizarem o mesmo número de estímulos e não são discutidas as desigualdades econômicas que negam as famílias mais pobres acesso aos seus direitos fundamentais. Essas discussões conceituais são chaves nas análises de políticas públicas, pois as políticas são gestadas, também, a partir de definições da própria finalidade da educação. Nesse sentido, eu compreendo que as políticas para educação infantil são necessárias porque a criança possui direito a educação, e não porque isso significa uma economia nos investimentos do Estado.

 

Qual a importância da ideia do direito à Educação Infantil, integrando uma política intersetorial, marcando o atendimento às crianças como parte do processo educativo (e não somente uma política de assistência social)?

No Brasil, em especial na educação infantil, por vezes confundimos política de assistencial social, com assistencialismo na lógica de ações, favores, benevolência do Estado ou de filantropos para com sujeitos ou classes economicamente desfavorecidas. Isto porque, historicamente o processo de formação política brasileiro decorreu do que Gramsci denominou de Revolução Passiva, sendo a prática do transformismo a modalidade de desenvolvimento histórico. Penso ser interessante fazer essas observações, pois compreendo que a educação infantil no Brasil, em sua origem, não foi engendrada como uma política de assistência social, mas como compondo um arranjo social na lógica gramsciniana do transformismo. É somente a partir da Constituição de 1988, que conseguimos observar claramente a tentativa de construir um sistema público de seguridade social, sistematizado no reconhecimento do papel do Estado como provedor em responder as demandas sociais. É nesse processo que a educação infantil é reconhecida como compondo esse sistema de seguridade social.

Penso que esse é o grande marco para nossa área, isto é, o reconhecimento do direito, da criança e de sua família, à educação infantil na Constituição Federal.

No entanto, conforme já procurei indicar anteriormente, o reconhecimento legal ainda não foi plenamente efetivado, fato que só será possível, sob meu ponto de vista, a partir da expansão dos gastos públicos no fomento e efetivação de políticas que garantam os direitos já reconhecidos. Em outras palavras, observamos que a não eficiência na implementação de uma política setorial (direito a educação infantil, por exemplo), gera uma valorização das políticas intersetoriais como “saída” para consolidação desse direito. Assim, conforme podemos observar, a intersetorialidade passa a ser “uma aposta” para a implementação das políticas setoriais, sendo sua efetivação resultado da articulação entre instituições governamentais e sociedade civil. No entanto, se por um lado parece que, a integração da educação no plano da intersetorialidade pode resultar em avanços na consolidação desse direito; por outro lado pode gerar novos problemas e desafios relacionados à superação da fragmentação e a própria articulação (que é diferente de intersetorialidade) das políticas públicas, sobretudo se considerarmos o exposto anteriormente em relação a cultura clientelista e localista da administração pública nacional. Dito de outro modo, necessário considerarmos a importância da política intersetorial, mas não podemos depreciar a setorialidade. Segundo Sposati, a setorialidade pode ser secundarizada, dependendo das concepções e diretrizes que fundamentam as políticas. Novamente, aqui voltamos a necessidade de discutir as concepções que fundamental as políticas, e nesse caso específico, como o Marco Legal, como politica intersetorial define o papel do Estado, da Família e a função da Educação.

Nesse sentido, considero imprescindível, outra vez, lembrar que compreendo a educação como um bem público, um direito universal e um dever do Estado.

Logo, a educação, sob minha perspectiva de análise, não é uma estratégia de combate a pobreza, nem tão pouco uma estratégia na lógica de programas como o Perry Preschool. Essa diferenciação conceitual repercute no próprio processo de efetivação da política.  Para exemplificar isso podemos pensar no atual Programa Criança Feliz, classificado como um programa de caráter intersetorial. Enfim, o que procurei refletir é que, o fato do direito a educação infantil compor uma política intersetorial não garante automaticamente em ampliação desse direito.

Como isso pode ser fragilizado e afetado com a criação do Programa Criança Feliz (Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário - MDSA)?

Como pontuei no início dessa conversa, para analisar uma política, um programa é fundamental considerarmos seus diferentes contextos do processo de formulação de políticas. No caso especifico do Programa Criança Feliz, devemos considerar que é compreendido como intersetorial, e será “implementado a partir da articulação entre as políticas de assistência social, saúde, educação, cultura, direitos humanos, direitos das crianças e dos adolescentes” conforme consta no documento. Entretanto, ao lermos o documento ele anuncia que priorizará a primeira infância (embora fale de articulação de políticas não exclusivas para primeira infância), aqui definida como no Marco legal, isto é do nascimento até aos seis anos; e seus objetivos num total de cinco, apresentam três com o foco no desenvolvimento da criança e em sua família. Outro objetivo indica “mediar o acesso da gestante, das crianças na primeira infância e das suas famílias a políticas e serviços públicos de que necessitem”, mas não informa quais são esses serviços. Em nenhum dos objetivos é claramente definido a Educação Infantil na perspectiva da primeira etapa da educação básica. Ainda de acordo com o documento da lei, os componentes para alcançar os objetivos concentram-se, sobretudo, na educação das famílias, e a exemplo dos objetivos, os componentes não definem nenhuma ação voltada para o incremento da educação infantil. Pelo contrário, o que é definido é o “desenvolvimento de conteúdo e material de apoio para o atendimento intersetorial às gestantes, às crianças na primeira infância e às suas famílias”. Além desses aspectos, o apoio técnico e financeiro fica condicionado “ao atendimento de critérios definidos pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário, ouvido o Comitê Gestor”, e em seu Artigo 9º pontua que para a “execução do Programa Criança Feliz poderão ser firmadas parcerias com órgãos e entidades públicas ou privadas.”

Essas observações, ainda que rápidas, nos permite visualizar as repercussões na educação infantil e o perigo do retorno de uma política com base não na seguridade social, como indicamos anteriormente, mas na lógica focal e da benesse. 

Para além desse aspecto, se analisarmos o próprio processo de anúncio do programa percebemos uma ênfase no papel da família, de modo especial, da mulher como a grande responsável pelo desenvolvimento saudável das crianças, como afirmado no discurso de lançamento do programa. Michel Temer justificou a escolha de sua mulher como embaixadora do programa como uma forma de “exatamente incentivar as senhoras mulheres do país, autoridades. Seguramente Marcela um dia vai convidar as senhoras primeiras-damas e as senhoras prefeitas municipais para estarem todas aqui em Brasília. Para que não fique apenas como um programa da União, mas que seja de toda a Federação, portanto, da União e igualmente de todos os Estados”. Essa fala indica qual concepção de família e de mulher fundamentam o programa, concepção que em um país que possui altos índices de violência contra as mulheres, um país que ainda é marcado por diferenças salariais entre homens e mulheres é no mínimo perigoso e regressivo. Outro aspecto que merece ser destacado é que, na fala da primeira dama ela anuncia que, "Quem ajuda os outros, muda histórias de vida”, indicando assim qual é concepção política desse programa, ou seja, a lógica que marca esse programa não é a lógica de compreender a política social como direito, conforme procuramos discutir anteriormente.  E para finalizar, ainda na intenção de socializar elementos para nossas reflexões, o programa Criança Feliz foi seguidamente justificado segundo a lógica da importância da educação nos primeiros anos de vida e do papel fundamental da mãe (família) nesse momento da vida. Essa lógica, qual seja, a lógica dos primeiros anos como cruciais para o desenvolvimento humano e o papel dos pais nesse processo, é legitimada pelas análises dos estudos desenvolvidos por Heckman, por exemplo, que em entrevista em 2015 afirmou que “Está provado que a família é o fator isolado que mais explica as desigualdades numa sociedade como a brasileira”. Ele se referia as diferenças de desenvolvimento apresentada pelas crianças e porque se deve investir na educação inicial.

Essa perspectiva de educabilidade das famílias não é nova, já em 1999 o segundo informe do Banco Mundial pontuava que a desnutrição infantil, alarmante, sobretudo nos países da África decorria das práticas impróprias de alimentação das crianças, logo é necessário educar essas mães.

Não obstante, o próprio Organismo relatou os graves problemas estruturais dos países desse continente, logo, as questões da desnutrição, morbidade infantil e outros problemas não podem ser analisadas somente como decorrente de uma falta de educação das famílias. Em que pese a importância das mediações no desenvolvimento humano, a velocidade da mielinização cerebral na primeira infância; não podemos pensar em políticas para infância e para educação infantil apenas sob essa perspectiva, isto é, sem considerar as intensas desigualdades econômicas que marcam nosso país. Desse modo, um programa gestado sob essa perspectiva, seguindo a lógica da educabilidade, sobretudo, das famílias é pravo. Para finalizar, podemos ainda refletir que, esse programa é pensando a partir de um padrão social de família e infância considerado adequado. Dessa forma, ao se afirmar um determinado modelo de relação com a criança como o correto, se deslegitima outras formas de interação, ou seja, se deslegitima as competências das famílias pobres para educar seus filhos; bem como se configura numa boa estratégia de disciplinarização das famílias e a definição de um modelo único de família.

Tendo em vista que este projeto vem sendo apresentado como a principal política de atendimento para das crianças de 0 a 3 anos, qual a necessidade de acompanhar a implantação de novos programas na Educação Infantil?

Penso que não apenas temos a necessidade de acompanhar a implantação de novos programas na educação infantil, como devemos acompanhar o próprio processo de implementação do Programa, afinal, conforme definido, esse é um programa que será realizado mediante adesão dos municípios. Nesse sentido, fundamental acompanharmos, tencionarmos esse processo, em especial porque ele prevê a chamadas parcerias com setor privado e supõe na formação de “profissionais” para atuarem junto às famílias, além dos aspectos conceituais apontados anteriormente. Novamente ressalto que é um Programa pensando na “perspectiva da necessidade” e não do direito, o que resulta na redução da própria função da educação infantil, e conforme anunciado no próprio documento, a execução pode ser realizada via parcerias com setor privado, o que poderá gerar uma restrição da participação do Estado como responsável pelo provimento do direito à educação básica, em especial, para a educação infantil. Divide, dessa forma, e transferem responsabilidades no provimento deste direito a outros sujeitos coletivos, dentre os quais as organizações não-governamentais, no sentido de assegurar a expansão das matrículas na creche e a diminuição de custos via o protagonismo das famílias.

Essa concepção de educação, isto é, a educação a partir da lógica econômica e como importante estratégia de alívio da pobreza, parece se organizar a partir da lógica das políticas redistributivas compensatórias, se afastando da ideia de políticas redistributivas estruturais.

Assim, as causas estruturais da pobreza não são atacadas e o que é fomentando é o desenvolvimento de políticas compensatórias focalizadas. E, especificamente na educação infantil o fortalecimento dessa lógica repercute diretamente no fomento e ampliação de programas e ações focais retirando a educação infantil do contexto do direito e inserindo-a como medida paliativa para aliviar os resultados de políticas econômicas que se fundamental na ideia de gastos mínimos na área social, conforme podemos observar nos atuais discursos do atual governo federal. Outro aspecto que torna imprescindível o acompanhamento desse programa e de possíveis novos programas é o fato de que, se considerarmos as indicações de organismos internacionais, e das pesquisas utilizadas para justificar o Programa Criança Feliz, por exemplo, é possível pressupor que será incentivado a histórica segmentação pela idade. Isto é, para os menores a ideia de proteção, nutrição, educação das famílias; para as crianças maiores de três anos a lógica da preparação para o ensino fundamental. Essa segmentação também poderá ocorrer na definição de qual população o Estado deve focalizar suas ações, isto é, na seleção da população que deve receber esta ação. Em decorrência, o reconhecimento do direito das crianças e suas famílias ao ensino gratuito e público é suplantado em nome da necessidade de focalizar as ações do Estado nas populações pobres. Dito de outro modo, o direito social é convertido em uma prestação individualizada, não compondo a esfera das políticas públicas que possuem como pressuposto o atendimento a todas as pessoas, inclusive aos grupos “vulneráveis”. O termo inclusive aqui não é o mesmo que “preferencial ou exclusivo”. Assim, o poder público que deveria organizar sistemas adequados para garantir a participação de todos nos bens da coletividade e uma melhor distribuição desses bens – princípio a partir do qual as políticas públicas são forjadas – se volta para o desenvolvimento de diferentes programas estratégicos e compensatórios da assistência focalizada. Enfim, compreendo então ser fundamental acompanharmos a implementação do Programa Criança Feliz, e de outros programas voltados para Educação infantil, mas também considero fundamental fazermos uma discussão dos conceitos que entendemos como fundamentais no processo de defesa da educação infantil como direito, mantendo uma vigilância para não sermos “encantados” por alguns discursos que na aparência são tão próximos aos nossos, mas na essência são construídos a partir de outra lógica do papel do Estado, da sociedade civil e do direito.