Entrevista com Denise Leite (UFRGS) - "A qualidade da educação superior e o complexo exercício de propor indicadores"

  • A edição número 64 da Revista Brasileira de Educação (RBE) tem como temática o Ensino Superior, buscando evidenciar pesquisas e debates em torno do assunto. E o primeiro artigo da publicação traz exatamente o resultado de uma ampla pesquisa, com o título de "A qualidade da educação superior e o complexo exercício de propor indicadores".

O Portal ANPEd conversou com uma das autoras, Denise Leite (UFRGS). Na entrevista a pesquisadora aborda temas como internacionalização e a busca por indicadores de qualidade, a partir de um amplo trabalho fruto da articulação de quatro universidades. "Somos pela avaliação institucional que envolva participação, exercício de cidadania democrática. Portanto, avaliar, não é somente responder questionários, preencher planilhas disponibilizadas em plataformas exigentes e deixar o dado morrer sem análise.  Nossa preocupação foi encontrar indicadores que olhassem para dentro da universidade, que olhassem o que nos diferencia de outros, a nossa qualidade local colocada frente à qualidade global." 

Como vocês apontam no início do artigo, o complexo exercício de propor indicadores para qualidade da educação superior tem como primeiro ponto de tensionamento a noção de "qualidade", esta sujeita à regulação decorrente das políticas educacionais e da representação da sociedade, além de ser um conceito vago na própria Lei de Diretrizes e Bases do Ensino Nacional (LDBEN). Qual o impacto disso na busca por indicadores?

Qualidade é um conceito amorfo, adapta-se a muitas interpretações. Na literatura mundial há rankings com critérios diferentes para medir qualidade das instituições. Os indicadores são quantitativos e a nossa crítica se colocava não no quantitativo, mas na ausência de critérios para medir o óbvio de uma instituição, suas funções ligadas ao ensino, à gestão, à profissionalização e formação docente e à pedagogia universitária à perspectiva de internacionalização e abertura ao mundo global. Em nossa perspectiva, desde 2006 trabalhando no tema, um indicador deveria ser um marcador com referentes em padrões que fizessem sentido para as pessoas que estão labutando dentro das IES e fossem ao mesmo tempo um espelho deste agir ético, prático, estético, para aqueles que estão fora dela. Cada investigador voltou-se para dentro de seu campo de estudos – Marilia com internacionalização, Maria Estela com gestão da educação superior, Mabel com ensino de graduação, Sílvia com profissionalização e formação docente, eu e Cleo com Inovação pedagógica. Estas temáticas foram dobradas e desdobradas por nossos orientandos. Na verdade, produzir indicadores é mais ou menos fácil porque quase todas as medidas avaliativas tomam por base a pesquisa, o pesquisador e suas publicações (Çakir, por exemplo, encontrou pelo menos 210 indicadores ao comparar os principais rankings internacionais). O difícil é fazer o que fizemos, produzir indicadores qualitativos, um exercício nada fácil quando se quer objetivar medidas de objetos que são muitas vezes subjetivos.

 

  • Leia o artigo "A qualidade da educação superior e o complexo exercício de propor indicadores" (PORTUGUÊS // INLGLÊS)

 

O que é o Projeto Observatório da Educação Superior? De que forma a pesquisa sintetizada nesse artigo buscou trazer novas reflexões sobre a qualidade da educação superior?

O projeto intitulado “Indicadores de Qualidade para a Educação Superior Brasileira” foi um  “observatório” incluído em um programa Capes que visava tanto articular pós-graduação, licenciaturas e escolas de educação básica quanto estimular a produção acadêmica e a formação  em pós-graduação - tanto em nível de mestrado quanto de doutorado. À diferença de outros, foi desenvolvido em parceria por 4 universidades – PUCRS, UFRGS, UFSM, UNISINOS mais a  Rede RIES que congrega inúmeras outras universidades. O artigo foi assinado pelas coordenadoras do projeto em cada IES. Marília Morosini foi a Coordenadora Geral. Marilia e Cleo da PUCRS, Denise e Maria Estela pela Ufrgs, Mabel pela Unisinos e Sílvia pela UFSM, integraram o grupo de pesquisadores-coordenadores. Fizeram parte das equipes nossos orientandos, bolsistas, alunos, técnicos e toda a Rede Ries. Dado o alcance do projeto e a performance do grupo ganhamos um Pronex, Programa de Apoio a Núcleos de Excelência, o que consideramos uma vitória em pesquisa dado que não era fácil obtê-lo em nossa área de estudos em Ciências Humanas e Sociais. Como sabemos, o Pronex foi uma parceria entre o CNPq e a Fapergs gaúcha.

_Denise Leite (UFRGS), uma das autoras do artigo "A qualidade da educação superior e o complexo exercício de propor indicadores"

Tínhamos uma equipe grande e não foi tarefa fácil sintetizar os achados em um artigo único como este agora publicado. Muito bom que também está em inglês. Esperamos vários anos para que ele fosse veiculado na Revista da Anped que considerávamos ser o mais importante veículo para a área e fazíamos questão de tê-lo divulgado entre nossos pares. Nossa intenção desde sempre foi estudar, refletir e discutir com diferentes públicos aquilo que mais importa para qualidade de uma instituição e esperamos a mesma reação dos leitores da RBE. A tônica de pesquisa foi usar gradativamente os resultados de nossas análises e discuti-los em seminários ao longo do tempo, com as comunidades mais próximas e com pesquisadores estrangeiros de relevância na área da educação superior. Desta forma, comunidades acadêmicas e também as não acadêmicas do nosso país e de outros países foram se integrando ao trabalho. Tivemos em nossos seminários (11 ao todo) intelectuais expoentes como Susan Robertson, Roger Dale, Hugo Aboites, para citar apenas alguns. Outra característica que diferenciou este estudo de outros foi buscar uma avaliação externa internacional para nosso trabalho. Após cinco anos de investigações, uma peer evaluation foi realizada presencialmente por experts do México – Axel Didriksson; de Portugal - Rui Santiago, de Argentina - Marcela Mollis, para oferecerem parecer público ao trabalho de investigação. Com isto, pensamos estar a fazer qualidade enquanto buscávamos estudar qualidade.

Vocês salientam que, apesar ser fator de legitimação da circulação do conhecimento e da formação de recursos humanos, a proposição de indicadores que avaliem a relação entre internacionalização universitária e qualidade não é clara. Por que essa contradição tão latente? Qual a importância de indicadores qualitativos voltados à internacionalização Sul-Sul e não apenas Sul-Norte?

Nesse ponto acho que posso tentar responder pelas colegas que trabalharam diretamente com internacionalização, porque sendo qualidade um conceito, ou melhor, um concepto, ela é multireferencial, multidimensional etc e nós queríamos construtos sim, mas plenos de, ou engravidados (como diria a colega Cleo), de cidadania, democracia, “latinoamericanidade”. Nesse sentido, os indicadores deveriam captar, como sugeres, a internacionalização sul-sul, ou seja, a mobilidade docente, discente e de técnicos (que consideramos fundamental) em países da AL e África, por exemplo. Seria como que uma cooperação internacional mais horizontal e solidária que até é feita, mas deve ser medida, avaliada, para ser igualmente valorizada em sua importância. E, de novo, “pegar” com indicadores qualitativos esta missão das universidades é um difícil exercício.

"A qualidade exige um 'exercício permanente de autorreflexão' que atenda a referenciais teóricos, éticos e políticos orientados para um processo avaliativo no qual toda a instituição possa engajar-se." Nesse sentido, qual a importância do diálogo constante entre academia e comunidade?

Somos pela avaliação institucional que envolva participação, exercício de cidadania democrática. Portanto, avaliar, não é somente responder questionários, preencher planilhas disponibilizadas em plataformas exigentes e deixar o dado morrer sem análise.  Nossa preocupação foi encontrar indicadores que olhassem para dentro da universidade, que olhassem o que nos diferencia de outros, a nossa qualidade local colocada frente à qualidade global. Estudamos muito os indicadores OOECD, UNESCO e outros de igual importância. Mas, tivemos o cuidado de pensar em indicadores que partissem das comunidades e fossem por elas aceitos. Vejam o exercício que fizemos para validar os indicadores que surgiram dos contatos permanentes com as comunidades internas e externas às nossas universidades – só para lembrar, a colega Maria Estela organizou o Seminário Vozes da Comunidade em que perguntávamos a quem não estava na universidade o que dela esperava. Assim, ainda que modesta, nossa contribuição com este estudo é trazer novos indicadores para aproximar pessoas interessadas em melhorar a qualidade das nossas instituições, para serem usados em processos autoavaliativos, em processos em que as comunidades internas e externas à universidade possam se olhar cara a cara e esboçar uma fotografia da instituição a partir daquela qualidade em que elas acreditam.

Na pesquisa vocês buscam investigar qual a compreensão dos professores da educação superior quanto à realidade da formação e do desenvolvimento profissional em suas instituições. O que mais lhes surpreendeu nessa investigação?

A rejeição à dimensão do "Protagonismo do Aluno" como referente na validação dos marcadores de inovação pedagógica já era esperada?

 Nós sinceramente achamos que os processos pedagógicos não precisariam ser reprodutivos. Poderiam ser inovadores e também estar ao serviço de uma certa prestação de contas da universidade e de seus professores para com as diferentes camadas sociais - não só aquelas que estão a chegar na universidade, os novos públicos, quanto suas famílias. Afinal nossos alunos merecem ter bons professores, ter professores que busquem inovação. E, quando consultamos os experts, daqui e de outros países, eles nos responderam que aquilo que se faz nas aulas, aqui na minha universidade e em outras, os futuros professores farão em suas aulas também. “Os valores aqui veiculados têm a ver com os valores que amanhã estarão no circuito de atuação profissional dos egressos desta instituição”. E, isto é muito sério. Há inúmeras questões éticas que despontam neste exato momento em nosso país e, enquanto vemos pessoas respondendo a inquéritos sendo conduzidos por fraudes e desvios éticos, nos perguntamos – Afinal, estas pessoas “saíram de” ou foram “formadas” em universidades? O que aprenderam? Eram universidades bem avaliadas, com certeza...

Mas, então, construir indicadores para avaliar o ensino, a pesquisa e a extensão pode, sim, incluir a forma em que se dá a relação de inovação, tentar a medida do que não é tradicional. Sobre tua pergunta a respeito do protagonismo: Parece que o protagonismo foi considerado redundante – o aluno sempre será e é o protagonista do ato de aprender, isto não deveria ser inovador, deveria ser apenas o básico! Como sabemos, às vezes, o aluno é apenas espectador.

Como vocês avaliam que pesquisas como essa podem trazer uma contribuição aos processos e reflexão sobre a temática?

Vejo que nossa pesquisa interessa a muitos públicos. Ontem mesmo recebi o email do Research Gate dizendo que nossa pesquisa era um spotlight - em menos de uma semana o artigo postado havia sido lido por 50 pessoas! Isto é um feito. Talvez também seja uma mostra de quão insatisfeitos estamos com a avaliação institucional que temos, com os rankings, as auditorias e o accountability. As críticas são muitas. O Almerindo Afonso, que esteve entre nós, disse que a medida de produtividades está vampirizando as relações na academia. Nossa contribuição que foi obtida depois de um grande esforço, muito trabalho entre pessoas lotadas em diferentes instituições, em distantes cidades, mostrou-se fecunda, também para nossas próprias relações. O resultado sintetizado no artigo é apenas uma pontinha do iceberg. Há teses, vários artigos, anais de eventos, 6 livros publicados (Coleção PUCRS Qualidade da Educação Superior). Mas, é assim que a ciência se comunica e com rapidez – pelo artigo. O que nós esperamos? Que os indicadores sejam sugestivos para processos de avaliações que tenham por objetivo a melhoria de qualidade, não aquela pensada de fora para dentro, mas aquela avaliação com indicadores que marcam coisas nossas que acontecem conosco na instituição e que precisam ser melhor pensadas e revistas.

No quadro síntese do artigo– Indicadores gerais – agrupamos e nomeamos os marcadores dos objetos que nos parecem dizer, falar sobre a qualidade de uma instituição de educação superior contemporânea brasileira. Esta “qualidade” poderia ser identificada por sua internacionalização, gestão, ensino, inovação pedagógica e desenvolvimento profissional docente. 

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