Educação e coronelismo: é preciso defender a educação pública inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana

Alexandre Filordi de Carvalho (UNIFESP)
Pedro Ângelo Pagni (UNESP)

Silvio Gallo (UNICAMP)

A Constituição Federal de 1988 é uma indelével descontinuidade na degradante história política brasileira recente, marcada pela ditadura civil-militar (1964-1984). Considerada como um dos marcos jurídicos mais avançados do Ocidente, tratou de fazer convergir ao longo da consolidação de seu texto a garantia irrevogável de direitos aos cidadãos cujas vozes sempre estiveram emudecidas pela força dos Donos do Poder no Brasil, valendo-nos da obra de Raymundo Faoro.

Não sem sentido, a referida Constituição passou a conceber a educação, em todos os seus estamentos, como um direito universal inalienável, claro está, com o intuito de fazer mudar as distorções sociais brasileiras, fruto de quase meio milênio de injustiça social e de exploração humana que, malgrado suas tipificações, sempre colocaram de um lado os herdeiros da senzala e, de outro lado, os epígonos da Casa Grande.

Para tanto, houve por bem enfatizar o indissociável direito de “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” com o empenho solidário de uma sociedade que pudesse ser autora e atora na “gestão democrática do ensino público”. Certamente, tratava-se de romper com os hábitos de uma experiência de educação cuja sociedade, no quase apagar das luzes do século XX, ainda convivia com a força do giz na ponta do chicote ou no furor do chumbo.

Quase uma década após a promulgação da Constituição de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9.394/1986) se empenhou em reforçar o lugar da liberdade no amplo campo da educação, não sem antes afirmar que a toda experiência com a educação é “inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana”. Tais princípios, mais uma vez, colocam à prova o necessário compromisso social com uma educação que, de fio a pavio, deveria estar consignada ao princípio de relações humanas democráticas, sobretudo desde e a partir da própria gestão pública e democrática da educação. Afinal, tratava-se de celebrar a emersão de um jovem Estado laico desejoso de caminhar, refundando a si mesmo com os desafios de uma outra educação, não na direção ingênua de se ver “deitado eternamente em berço esplêndido”, mas, minimamente, na direção de poder alcançar algum tipo de “paz no futuro”.

Ainda que de maneira tortuosa e imperfeita, como é próprio das tentativas humanas, as últimas gestões de políticas públicas no âmbito da Federação intentaram consolidar condições para pavimentar caminhos relevantes ao acesso de uma educação pública e laica com certa qualidade. Nesse caso, tanto a dimensão dos princípios da liberdade, da democracia e, não menos importante, da solidariedade humana foram esteios importantes a fim de fazer valer a manutenção dos rompimentos com a “clava forte” de nossa herança social injusta e desigual, visando processos sociais inclusivos que passassem também pela educação.

Ocorre, contudo, que nos anos recentes o realinhamento de certas perspectivas político-partidárias eivadas com os afãs de má-fé e ignorância para com o bem público maior, em nome da sanha capitalista da locupletação de interesses privados, têm solapado de modo ardiloso as condições legais daquele projeto de educação assegurados pela Constituição Federal e pela LDB, sem contar os demais avanços legais daí subsequentes.

Não apenas a total falta de trato público democrático e solidário encontram-se em jogo, como se vê na militarização das negociações com professores, gestores e estudantes de escolas públicas nos Estados de São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul; ou na militarização da gestão das escolas públicas no Estado de Goiás ou  da entrega de suas escolas para as Organizações Sociais (OS); ou ainda na recente extinção da Secretaria Especial de Direitos Humanos do governo interino de Michel Temer. Mas também está em jogo a volta truculenta da supressão da liberdade como condição fundamental à educação. Em outros termos, tais experiências assinalam com a convocação insidiosa de estratégias que bloqueiam os espaços públicos para a realização do diálogo, da contestação, da crítica, do convívio com as diferenças e as singularidades, da formação democrática e popular, da necessidade ainda mais de se ampliar a educação pública com qualidade visando a emancipação social de seus sujeitos.

Isso não é tudo, porém. Parece-nos que há um grave viés de policiamento discursivo em voga, danoso aos princípios da educação laica, porque pressupõe-se livre. Sem liberdade, a experiência fundamental com toda formação humana corre o perigo de cair no espectro redutor de homonomias e ortodoxias de pensamento. A liberdade é fundamental na formação das diferentes potencialidades humanas a envolver: credos, posicionamentos políticos, sexualidades, multiplicidades subjetivas, estilísticas de existência, diferenças de pensamento; mas também a liberdade é fundamental na produção livre de afetos, de modos de perceber o mundo, de estar do mundo, de ali se ver e fazer-se humano.

Preocupa-nos a tomada caudalosa de experiências que vêm, insistentemente, solapando os fundamentos de uma educação laica, livre, solidária, democrática e dialógica. Não apenas o Governo interino de Michel Temer demonstra sintomas nessa direção, sobretudo ao vincular-se ideologicamente aos partidos cujas demonstrações públicas de posicionamentos intolerantes, indignos à condição humana, contrafeitos à solidariedade e avessos à inclusão de qualquer espécie estão na ordem do dia, mas também pelo fato de trabalhar na contraordem dos avanços sociais capazes de operar na manutenção e nos avanços de uma educação pública e de qualidade. Prova disso seria a Desvinculação das Receitas da União (DRU) voltadas à Educação, roubando do povo brasileiro uma das seguranças jurídicas capazes de fazer cumprir um projeto de educação ainda imberbe.

Raymundo Faoro ressaltava que no amplo espectro dos Donos do Poder no Brasil o coronelismo exerceu magnetismo insuspeitável. Caracterizado por uma mescla de interesses difusos em torno de um poder visando certa hegemonia, regional ou até nacional, o coronelismo se valia de estratégias de ameaça, de medo, de coerção, em nome dos faustos latifundiários e oligárquicos e, fatalmente, em nome de uma ignorância instrumentalizada por esquemas de compadrio. Infelizmente, podemos dizer que o cenário atual é de uma atualização desse coronelismo. De um lado, porque o poder hegemônico se modula nas mãos de certos “donos” que se valem dos mesmos esquemas do coronelismo para barrar as possibilidades de liberdade, de consolidação democrática e de vínculos solidários, notadamente, via o estancamento do diálogo. De outro lado, porque o que tende a escapar a tal experiência de poder tem sido conclamado à ordem, ou pela força do próprio aparelho policial ou pela força ideológico-jurídico-legal do Estado, como é o caso da Escola Sem Partido, claro está, porque para os coronéis toda e qualquer ameaça é o que se coloca para fora de suas cercas.

Se Isabelle Stengers cunhou a expressão, homônima ao seu livro, nos tempos das catástrofes, referindo-se a toda complexa mutação em profundidade na conjuntura das condições de vida atuais, seguramente podemos usar a mesma expressão para dizer que, a continuar a valer o jogo de desmonte das seguranças jurídicas que prezam minimamente por um projeto de educação nacional livre, democrático e laico, também passaremos a viver tempos de catástrofes na educação. E é contra todo tipo de coronelismo que somos convocados a lutar, porque para todo tipo de coronelismo, algo que Paulo Freire jamais cessou de alertar, a educação baseada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, visando a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, não interessa. Vai ver é porque, como são coronéis, o mais importante é pagar “prodigamente à amante seus vestidos caros e seu luxo, para ostentação própria e desfrute alheio”, como alertara-nos Faoro e cujas coincidências nos fazem tremer de estupor e de revolta.