Educação a Distância na Educação Infantil, não! | colaboração de texto por Angela Scalabrin Coutinho (UFPR) e Valdete Côco (UFES)

EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL, NÃO! EDUCAÇÃO E CUIDADO COM AS CRIANÇAS, SUAS FAMÍLIAS E PROFISSIONAIS DOCENTES, SIM!

por Angela Scalabrin Coutinho (UFPR) e Valdete Côco (UFES) 

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Nos múltiplos desafios que se impõem neste contexto de pandemia que nos assola, urge reiterar a defesa da vida para todos e todas. Na articulação dessa defesa com o campo educacional, é mister lutar contra processos de intervenção curricular, marcando a necessidade de atenção às condições de cada comunidade educativa e de garantia de processos democráticos. Considerando essa perspectiva no diálogo com o trabalho educativo com as crianças pequenas, emergem manifestações sobre as inadequações da proposição da Educação a Distância (EaD) ou de prescrição de atividades remotas durante a suspensão das atividades presenciais em consequência da pandemia do Covid-19. 

A centralidade de iniciativas voltadas ao cumprimento de carga horária associada a conteúdos, com o uso de plataformas virtuais, redes sociais, correio eletrônico, recursos de videoaulas e outros, parece negar nossa situação de excepcionalidade, em que se mostram as condições de desigualdade em que vivemos, também no acesso aos recursos tecnológicos. Marca-se um entendimento da educação infantil (EI) como um serviço que precisa ser ofertado, como se fosse possível transpor o modelo presencial para um modelo  a  distância. Essa compreensão, além de não adequada aos processos educativos, vem impactando as dinâmicas familiares e afetando sobremaneira o trabalho docente.

Cabe lembrar que as profissionais da EI são, no quadro geral da educação, as que historicamente têm menor status social, dada a lógica de que quanto menor a criança menor o prestígio e o salário da profissional que a educa (CAMPOS, 1999). Quanto ao tipo de vínculo, de acordo com os microdados do Censo Escolar de 2019, das 433.766 docentes que atuam na EI pública no Brasil, 103.606 têm contrato temporário e 2.700 são terceirizadas. Há ainda outra categoria denominada auxiliares docentes, que compõe o total de 154.763 trabalhadoras na EI pública, sobre as quais não se tem a informação sobre o tipo de vínculo, mas sabe-se que 122.526 atuam em creche.

O destaque às questões e dados supramencionados têm a intenção de problematizar que a luta das profissionais da EI pela valorização profissional acompanha a trajetória da profissão (CÔCO, 2015) e que neste momento de crise a precarização das condições de trabalho fica ainda mais evidenciada, principalmente quando veem seus empregos em risco, caso não desenvolvam atividades a distância com as crianças, inclusive com bebês, mesmo que não tenham condições adequadas para tal, pois o que está em risco é o seu emprego e o seu salário (CORREA; CÁSSIO, 2020).

Esses tensionamentos exigem que consideremos três aspectos centrais:

  1. a ameaça de suspensão ou cancelamento dos contratos temporários ou de demissão das profissionais efetivas não pode justificar a adesão ao desenvolvimento das atividades EaD na EI, como se tem observado em relatos de professoras que, contra a  concepção sociopoliticopedagógica da EI e seus preceitos legais, veem-se obrigadas a atuar nessa modalidade;

  2. a necessidade de buscar mecanismos de apoio e defesa dos direitos dessas profissionais, principalmente em momento de crise como o que estamos vivendo. Nesse sentido, Secretarias e Conselhos de Educação, sindicatos e associações de trabalhadoras e trabalhadores do quadro do magistério e civil (sendo que é neste segundo em que se encontra grande parte das auxiliares docentes) e órgãos como Ministério Público do Trabalho e Justiça do Trabalho precisam atuar de modo articulado para buscar soluções para os desafios relativos à manutenção do emprego e do salário das profissionais;

  3. os riscos de impor às famílias (já com um conjunto de obrigações e responsabilidades profissionais) a combinação de suas funções paternas e maternas com a docência, acompanhando as crianças nas “atividades”, por vezes, requerendo horas em frente a computadores, o cumprimento de solicitações eleitas externamente a  cada contexto de convivência, a necessidade de recursos e materiais nem sempre disponíveis, etc. 

Tendo isso em conta, dentre outras questões que se evidenciam nesse quadro, cabe indagar: que legados produziremos aos processos educativos das crianças pequenas, no compromisso com seu desenvolvimento integral, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social? O que informamos aos pequenos ao configurar possibilidades de dispensar/abandonar à própria sorte as docentes que, cotidianamente, vêm apoiando suas descobertas na construção sistemática desse mundo? Que contribuições (ou máculas) produziremos ao preceito da educação como dever da família e do Estado, sustentada nos princípios de liberdade e solidariedade, voltada ao pleno desenvolvimento do educando, com essas iniciativas? 

Com essas questões, convidamos a mover a atenção em outra direção, na perspectiva de tomar a educação e o cuidado com as crianças, suas famílias e profissionais, buscando superar a abordagem da EI como um serviço. Valemo-nos de Hannah Arendt (1992, p. 247) para lembrar que “[...] a educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele [...]. É também onde decidimos se amamos nossas crianças [...]”. No reconhecimento da condição de excepcionalidade articulada à premissa de valorização da vida, convidamos à abertura para o respeito às comunidades locais, na possibilidade de compor processos relacionais de proteção de todas as pessoas envolvidas, alavancando os processos educativos (também de todas elas), para além da centralidade às obrigações escolares. 

 Daí convocar articulações conjuntas para mobilizar outras iniciativas, de modo que redes de ensino, instituições educacionais, famílias, profissionais da educação e crianças possam compor, na precariedade das condições que se impõem nesse contexto de excepcionalidade, ações comuns, afetas às suas demandas. Um olhar atento ao contexto já permite observar investimentos em destinar esse tempo para a formação das profissionais docentes, na direção de qualificar o retorno dos encontros presenciais com as crianças e suas famílias; em mover diálogos de fortalecimento dos laços com as famílias nesse momento de distanciamento social;  em compor trabalhos de apoio às famílias a partir de dúvidas em torno da educação e cuidado com as crianças nos espaços de confinamento em casa; na composição de sugestões de vivências que envolvam brincadeiras, músicas, contação de histórias, dentre tantas outras possibilidades ligadas aos recursos que as crianças, desde bebês, podem ter acesso; até a orientações sobre acesso a recursos e programas sociais que permitam a manutenção das condições de vida. 

Assim, muito pode ser produzido na abertura à produção de caminhos solidários, apostando nas crianças, famílias, profissionais e instituições educativas, no compromisso com a especificidade da educação infantil, no bojo da responsabilidade social com o direito à educação. Nas múltiplas possibilidades, toda e qualquer ação precisa, além de uma sustentação em processos democráticos, considerar o propósito de caminhar na direção de melhores condições de vida (e não produzir mais desigualdades), cuidando para que os meios estejam acessíveis a todas as partes e para que seu acesso seja uma opção respeitosa (de atenção à vida), sem colocar em risco a saúde física e mental das pessoas.

Concluindo, mais uma vez, insistimos que o trabalho educativo com as crianças pequenas agencia uma pedagogia específica, que tem seus requisitos e modos próprios, na interface com a configuração dos quadros profissionais requeridos e com o conjunto das políticas públicas que cuidam da vida das crianças. No cuidado com a vida de todas as pessoas, precisamos ficar em casa. Que não nos afastemos e que, juntos, fiquemos bem!