Depoimento de Rosa Maria Fischer sobre Nilton Bueno Fischer - homenagem e edital de Direitos Humanos - 38a Reunião Nacional da ANPEd

Desde o primeiro momento em que o professor Paulo Carrano me deu a notícia de que a ANPEd prestaria esta homenagem ao Nilton, fui tomada por uma indescritível emoção, não só porque se tratava da memória e do reconhecimento de uma das pessoas mais queridas de minha vida, mas pelo significado político, ético, humano, profundamente humano desse gesto da Associação.

Meu irmão tem uma história feita de lutas genuínas, as mais diversas, e que se concentram exatamente nisso, na defesa da educação e dos direitos humanos. Desde muito jovem, ele se mostrava a nós, na família, como a figura de um legítimo “irmão mais velho” – aquele que dava o exemplo, aquele que nos surpreendia por enxergar (e apontar ao mundo) a urgência de um olhar generoso, cúmplice e lutador em direção ao outro, de modo particular ao outro que nossas sociedades insistem em colocar à margem.

Nilton seguia os passos de nossos pais, dois mestres da escola pública e amantes incondicionais da arte de “professar”. Graduado em economia, ele não conseguiu escapar ao forte desejo de ensinar, de estar ao lado daqueles tão ávidos por aprender. Mais do que isso, desde suas primeiras pesquisas, a escolha foi a de investigar os modos de fazer educação que fugiam a qualquer padrão, a qualquer esquema mais previsível. Nilton queria saber, por exemplo, como se dava a ação educativa (em suas dimensões mais amplas) em espaços como o de um galpão de homens e mulheres adultos, recicladores de lixo. Esse é apenas um exemplo. E foram tantos...

Seus orientandos devem guardar muito bem a lembrança que nós, seus irmãos, filhos, tios, amigos e colegas, ainda temos, de uma pessoa absurdamente inquieta, que todos os dias (e noites – era um insone como eu) depositava um olhar novo e indagativo, de resistência e indignação, diante das coisas mais simples, por exemplo, do que ocorre nas administrações públicas de uma cidade. Lembro dele se perguntando por que razão o asfalto das ruas de Porto Alegre era tão mal feito, tão irregular, a ponto de prejudicar o correto caminho das águas da chuva e, principalmente, a segurança do simples pedestre.

Como uma criança curiosa, ele estava atento a tudo. E o que não ia bem, no sentido da “boa vida” das pessoas, todas elas, de todas as camadas sociais, tudo era motivo para longas elucubrações e, de imediato, mote para o ensaio de possíveis respostas, ações... Como bom educador, entendia que os direitos humanos tinham a ver com um conjunto de modos de vida, que permitissem a cada um e a todos a livre expressão: liberdade da palavra, de ir e vir, de poder estudar, de ter um trabalho digno, de amar e ser amado; liberdade de dançar e ouvir uma boa música, fosse ela a mais “brega” de todas (aliás, que ele adorava), fosse ela um lied  de Schubert ou uma bela composição de Chico Buarque.

O encontro e a celebração, pode-se dizer, eram para ele a maior alegria. Nos eventos da grande família Fischer, nas festas de amigos, nas comemorações com os orientandos, nos congressos acadêmicos (como os da ANPEd), Nilton era presença marcante, insubstituível. Festejar a vida, beber e saborear bons pratos, “junto com”, essa talvez se possa dizer que era uma de suas pequenas (grandes) felicidades neste mundo.

Estudioso, aberto aos saberes aparentemente desconexos entre si, pela livre apropriação que lhe permitia fazer vários autores “conversarem” uns com os outros, Nilton dedicou suas leituras, suas aulas, suas pesquisas ao mais profundamente humano e sensível, vivendo na carne e no cotidiano o sentido do direito de homens e mulheres a uma existência digna, na qual deveriam caber todas as diferenças. Esse era meu irmão. Esse era o professor. Esse era o imaginativo pesquisador, que circulou por este País semeando uma beleza e uma verdadeira “aula” de escuta do outro e em relação ao outro.

                                    Porto Alegre, 13 de março de 2017.

                                                            Rosa Maria Bueno Fischer