Declaração do Fórum dos Cursos de Formação de Professores das estaduais paulistas sobre a BNCC

DECLARAÇÃO DO FÓRUM DOS CURSOS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES DAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS ESTADUAIS PAULISTAS

Clique aqui e acesse a nota em PDF 

Nós,coordenadoras e coordenadores, professoras e professores, e estudantes de cursos de licenciatura da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho(UNESP) e da Universidade de São Paulo (USP), reunidos no Fórum dos Cursos de Formação de Professores das Universidades Públicas Estaduais Paulistas, em reunião realizada na UNICAMP no dia 17 de maio de 2018 para discutir a proposta de Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o Ensino Médio, apresentada pelo Ministério da Educação (MEC), e suas implicações para a formação de professores e o desenvolvimento da educação brasileira, nos posicionamos conforme segue:

A BNCC e a formação de jovens no Ensino Médio

Apesar do histórico de formulação da BNCC desde 2013, é perceptível uma abrupta mudança de rumos do debate pela atual gestão do governo federal, com descarte de versões anteriores e ausência de identificação de fontes e autores das novas versões surgidas. Mais do que isso, percebemos que o estágio atual do debate ignora todo o acúmulo de experiências sobre o Ensino Médio mantido pela comunidade educacional desde a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996, a respeito do currículo da Educação Básica, especialmente no que se refere às Diretrizes Curriculares Nacionais, que expressavam a riqueza e a pluralidade do debate e a indissociabilidade de um processo de formação que envolve os Ensinos Fundamental e Médio.

Substantivamente, a reforma do Ensino Médio já realizada pelo governo federal e a atual proposta de BNCC demonstram um objetivo de formação de mão de obra de baixa qualificação, reforçando o papel do Brasil na divisão internacional do trabalho enquanto uma economia subalterna e de pouca capacidade de inovação científica e tecnológica. Isso se expressa na ênfase daquelas políticas no ensino generalista, por áreas, pouco vocacionado para o desenvolvimento futuro do estudante em novos níveis de formação especializada, com garantia mínima de formação básica para o domínio da língua portuguesa e de operações matemáticas, desprezando a importância de uma formação sóciocultural ampla e sofisticada, comprometendo suas condições de acesso ao ensino superior e de desenvolvimento de sua formação em nível superior e de pós-graduação. É preciso que qualquer reflexão sobre a formação da juventude brasileira para o mundo contemporâneo considere o lugar do Brasil nas complexas redes de dependência e cadeias produtivas da economia mundial, o caráter estratégico do desenvolvimento de um sistema de ensino superior e de ciência e tecnologia apto a garantir a autonomia nacional na economia global, e a necessidade de formação de cidadãos autônomos, críticos e capazes de se posicionar como sujeitos ativos de uma sociedade que enfrenta profundas transformações sociais, econômicas e políticas.

A redução e a simplificação extremas do currículo do Ensino Médio previstas pela BNCC também afrontam as conquistas de inclusão e diversidade na educação realizadas nos últimos anos, expressas nas dinâmicas sociais e territoriais brasileiras contemporâneas, especialmente no que se refere às políticas de acesso e às diretrizes especialmente elaboradas para a educação de grupos sociais marginalizados, como a educação indígena e a educação no campo, a educação quilombola, entre outros.

Nesse aspecto, reafirmamos a necessidade de se resgatar os princípios da educação democrática, plural e inclusiva expressa na Constituição Federal de 1988, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e no Plano Nacional de Educação (PNE), exigindo que qualquer discussão sobre o Ensino Médio esteja adequada àqueles princípios. Em especial, observamos o disposto no artigo 206 da Constituição, no artigo 3o da LDB e no artigo 2o da Lei do PNE, no que se refere à igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; à liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; a valorização do profissional da educação escolar; a gestão democrática do ensino público; a garantia do padrão de qualidade; a valorização da experiência extra-escolar; a formação para o trabalho e para a cidadania, com ênfase nos valores morais e éticos em que se fundamenta a sociedade e na erradicação de todas as formas de discriminação; a consideração com a diversidade étnico-racial; e a garantia do direito à educação e à aprendizagem ao longo da vida.

No que se refere à necessária vinculação da educação nacional ao desenvolvimento econômico e social, também alegada pelo governo federal para sua proposta de reforma estrutural e curricular do Ensino Médio, lembramos que a Constituição Federal orienta a ordem econômica, a educação, a cultura e o desenvolvimento científico e tecnológico de acordo com os princípios da soberania nacional, da redução das desigualdades regionais e sociais, da busca do pleno emprego, do desenvolvimento equilibrado, justo e solidário, com destinação dos esforços da educação, da ciência e da tecnologia para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional, conforme seus artigos 170, 216-A, 218 e 219. A proposta da BNCC em discussão contraria frontalmente aqueles princípios constitucionais e o modelo de desenvolvimento neles expresso, ao rebaixar a formação de nível médio, restringindo o conjunto de saberes a serem oferecidos aos jovens, aprofundando desigualdades entre estudantes dos sistemas público e privado, e reduzindo a qualificação para a cidadania e para o trabalho a uma mera formação de mão de obra cuja qualificação mínima se resume ao domínio básico da língua e de operações matemáticas básicas.

Especificamente, nos preocupa a articulação problemática entre “unidades temáticas”, “objeto de conhecimento” e “habilidades”, colocada como “modelos” pela proposta de BNCC, apesar da garantia anunciada de flexibilidade e diversidade regionai. Entendemos que os problemas estruturais e de financiamento da educação pública brasileira impedirão a alegada flexibilidade e a prometida diversidade de oferta de percursos formativos no Ensino Médio. Em um sistema com problemas estruturais de oferta, a diversidade de percursos formativos se torna praticamente inviável, fazendo com que os “modelos” de propostas curriculares trazidos pela BNCC se tornem vinculantes e redutores da pluralidade de pontos de vista sobre a formação em nível de Ensino Médio.

Além disso, e como enfatizaremos a seguir, tal política curricular é conflitante com a formação universitária de professores e também incompatível com a realidade da ausência de professores licenciados em diversas áreas, inclusive naquelas tidas como prioritárias pela proposta do governo. Acreditamos que a solução para suprir as deficiências estruturais, financeiras e curriculares do Ensino Médio deve buscar o objetivo de qualificação da formação dos docentes, que é predominantemente assegurado pela formação universitária de professores e de garantia de suas condições de trabalho, com a efetivação de planos de carreira, políticas de qualificação permanente e formação em serviço, e do piso salarial nacional.

Nesse sentido, essa padronização disfarçada de flexibilização se coloca de maneira contrária às diversidades regionais em suas diferentes escalas e de currículos supostamente defendidas pelo MEC, pois impõe restrições à autonomia dos sistemas, das escolas e das universidades na definição de currículos, de projetos pedagógicos e da formação de professores. Além disso, submete a avaliação do Ensino Médio a medidas de qualidade exclusivamente baseadas em avaliações nacionais em larga escala e ranqueadoras, reduz o leque de competências e habilidades ao desenvolvimento de operações linguísticas e matemáticas básicas e reforça o centralismo da União no regime de colaboração colocado pela BNCC.

Também é preocupante a substituição, operada pela reforma do Ensino Médio e pela BNCC, do conceito de “expectativas de aprendizagem” pelo de “direitos e objetivos de aprendizagem”, um conceito jurídico-normativo, formalista, estranho à pedagogia e à psicologia e, principalmente, incapaz de oferecer medidas e parâmetros de avaliação do processo educacional em situações concretas e individualizadas. Entendemos que a defesa do direito à educação, previsto pela Constituição Federal, pela LDB, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pelo PNE depende da sua viabilidade em termos de políticas públicas e curriculares que substantivamente permitam a produção de conhecimentos pedagógicos por sistemas de ensino, escolas e professores; e que o direito à aprendizagem, como princípio ético e político fundamental da organização da educação nacional, não se confunde com os parâmetros psicopedagógicos substantivos que orientam a prática educacional e o processo de ensino-aprendizagem.

Efetivada a proposta do governo federal, entendemos que os direitos educacionais serão, na verdade, gravemente comprometidos, na medida em que estudantes de escola pública, que terão um ensino ainda mais precário e desigual, terão reduzidas suas chances de ingresso no ensino superior, e também ingressarão no mercado de trabalho em condições subalternas, pouco sustentáveis em uma economia dinâmica e complexa, e com baixo potencial de qualificação e mobilidade ascendentes posteriores.

Mais especificamente, nos preocupa a imposição de uma articulação obrigatória entre a BNCC, a política de formação de professores, as políticas de material didático e as políticas curriculares, com impactos negativos a médio e longo prazo tanto para o Ensino Médio quanto para o ensino superior. Também é preocupante que tais políticas estejam sendo formuladas a partir de interesses e de perspectivas alheios à comunidade dos especialistas acadêmicos e de profissionais da educação, bem como da realidade concreta do mundo da escola e dos sistemas públicos de ensino.

No que se refere à formação de professores de Ensino Médio em nível superior, entendemos que a proposta de BNCC leva ao esvaziamento da autonomia docente na sua capacidade criativa e intelectual, estabelece lógicas curriculares estritamente atreladas a avaliações externas padronizadas e representa o apagamento de conquistas históricas relativas a desenhos curriculares voltados à diversidade cultural.

Embora se reconheça os avanços pedagógicos de um ensino interdisciplinar flexível e voltado para o desenvolvimento de competências e habilidades, entendemos que a proposta de BNCC traz uma concepção de interdisciplinaridade clara, mas na sua aplicabilidade, enfoca apenas determinadas áreas numa compreensão que gera a especialização no Ensino Médio. Imputa uma prática meramente disciplinar não trazendo contribuições e avanços na construção de saberes além dos saberes de determinadas áreas. Além disso, nessa lógica curricular, há a supervalorização de determinados campos epistemológicos em detrimento de outros, impossibilitando que os estudantes possuam uma formação ampla, articulada e de fato interdisciplinar. A BNCC defende teoricamente uma política curricular pautada num ensino interdisciplinar, mas de fato foca na disciplinaridade mediante a supremacia de determinadas áreas sobre outras, impedindo a construção de conhecimentos interdisciplinares mais amplos, reais, contextuais, sociais, políticos, históricos e culturais. Há avanços significativos nos cursos de formação de professores no contexto brasileiro que já apontam a necessidade de uma formação interdisciplinar e articulada a diferentes saberes. Nessa direção, há propostas curriculares presentes em Projetos Pedagógicos dos Cursos que propõem uma formação que valoriza princípios epistemológicos e ações metodológicas numa ampla e irrestrita valorização das diferentes áreas e não a negação de algumas em detrimentos de outras. Nesse sentido, é preciso ter em conta que mesmo nas mais avançadas teorias pedagógicas, que tratam dos saberes docentes e do conhecimento pedagógico do conteúdo, o conhecimento articulado e interdisciplinar deva ser buscado na valorização de saberes em espiral pautado na busca pela complexidade crescente de diferentes áreas promovendo diferentes formas de experimentação cognitiva, cultural e estética.

Além disso, a articulação existente atualmente entre formação de professores no Ensino Superior e currículos do Ensino Médio permite a saudável e necessária interlocução com o conhecimento avançado produzido na pesquisa e no ensino universitários para a formação de jovens no Ensino Médio, capacitando-os para a compreensão dos desafios sociais, políticos, econômicos e tecnológicos do mundo contemporâneo e garantindo as condições do desenvolvimento posterior de sua formação em nível superior.

No que se refere à viabilidade da implementação da BNCC tal como proposta pelo governo federal e da continuidade da formação de professores pelas universidades, é preciso reiterar que os sistemas de ensino terão enormes dificuldades em oferecer toda a diversidade de percursos formativos prometida pela proposta de flexibilização curricular da Base, dados os déficits estruturais e históricos da educação pública, em termos administrativos e financeiros, agravados pela crise econômica recente e pela imposição de um teto aos gastos públicos. Vislumbra- se um cenário de predomínio de professores generalistas, voltados para áreas de conhecimento reduzidas e pouco especializadas, o que impactará a formação universitária de professores de Ensino Médio e a formação de jovens desigualmente distribuídos entre sistemas públicos e privados de ensino, e entre sistemas mais ou menos dotados de recursos humanos e financeiros, reintroduzindo no sistema educacional brasileiro uma concepção de escola que há muito deixou-se para trás: a escola propedêutica voltada para a classe média que anseia pelo Ensino Superior e a escola técnica para os mais pobres.

Do ponto de vista da formação de professores em nível superior, portanto, essa precariedade da BNCC compromete a estabilidade de certos conhecimentos e disciplinas especializados nos currículos do Ensino Médio, levando à impossibilidade que as universidades mantenham a médio e longo prazo um planejamento adequado e consistente para a execução de seu papel na formação de professores para aquele nível de ensino, que considere as diversidades regionais e sociais, e também seja capaz de incorporar os avanços do conhecimento produzidos pela pesquisa acadêmica. Reiteramos a necessidade de resgatarmos os princípios constitucionais de uma educação voltada para o pleno desenvolvimento humano, da cidadania, do trabalho, e de uma ordem social e econômica soberana, justa, equilibrada, inclusiva e tecnologicamente autônoma e avançada.

A necessidade de um amplo debate público, com participação ativa das Universidades Públicas Estaduais Paulistas

16.Ante o exposto, o Fórum dos Cursos de Formação de Professores das Universidades Públicas Estaduais Paulistas se posiciona pela defesa da autonomia universitária e pela universidade pública, de qualidade e socialmente orientada, garantida pela Constituição Federal e pela LDB, e fortemente ameaçada pela proposta de BNCC, no que se refere à desarticulação entre a formação de professores e a produção de conhecimento nas universidades, de um lado, e as políticas curriculares e de formação de jovens que aquela política propõe.

Nesse sentido, o Fórum reafirma seu compromisso com o modelo de educação, de cidadania e de desenvolvimento econômico, científico e tecnológico previstos pela Constituição Federal com vistas à soberania nacional e a uma sociedade justa, solidária e igualitária, em vários aspectos contrariado pela proposta de BNCC.

Por fim, o Fórum dos Cursos de Formação de Professores das Universidades Públicas Estaduais Paulistas conclama professoras e professores, estudantes, coordenadores e coordenadoras de cursos que se engajem nos debates públicos sobre a BNCC.

Fórum dos Cursos de Formação de Professores das Universidades Públicas Estaduais Paulistas (UNICAMP, USP e UNESP)

Campinas, 17 de maio de 2018.