Da inspiração nos secundaristas ao diálogo com a pós-graduação, ocupações seguem gerando resistência e aprendizados cotidianos em todo o país

Reportagem: Amanda de Oliveira e Camilla Shaw*

Desde o início de outubro o Brasil é palco de um crescente movimento de ocupações de escolas, institutos federais e universidades. Iniciado por estudantes secundaristas no Paraná, em oposição à Medida Provisória 746/2016 – que promove a contrarreforma do ensino médio -, o movimento de resistência incorporou à pauta a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 55/2016 (antiga PEC 241), que congela por 20 anos os gastos da União em áreas sociais, entre elas, a educação.

Até o início da apuração para a reportagem, de acordo com a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), mais de mil instituições de ensino estão ocupadas, em 19 Estados e no Distrito Federal. Entre essas, 222 são campi universitários. Além de possuírem uma lista concreta de lutas e objetivos, as ocupações se constituem como espaços de resistência e aprendizagem, possibilitando a abertura de diálogo entre todas as esferas da comunidade acadêmica e da sociedade.

No início do mês, o presidente Michel Temer, em discurso para uma plateia de empresários e executivos, ironizou o “desconhecimento” dos estudantes sobre a PEC 55. “[Pergunto] Você sabe o que é uma PEC? É uma Proposta de Ensino Comercial. As pessoas não leem o texto. Não estou dizendo os que ocupam ou não ocupam, estou dizendo em geral. As pessoas debatem sem discutir ou ler o texto", disse. Para o professor Paulo Carrano, primeiro secretário da ANPEd e especialista em estudos de juventude, o comentário do Presidente foi infeliz e vai na contramão do diálogo que precisamos empreender para a resolução de conflitos numa sociedade democrática. De um modo geral, a forma desdenhosa de se referir aos jovens ocorre no registro de argumentos conservadores que ora desqualificam as ações coletivas juvenis afirmando que estes são imaturos ou ignorantes do próprio agir ou, ainda, que estes seriam guiados ou tutelados por interesses políticos de terceiros. A atual geração de jovens é muito mais consciente e autônoma do que o quadro inconsequente que o atual presidente da República tentou pintar, comenta Carrano.

A ANPEd foi a algumas dessas ocupações, presenciando exatamente o contrário do exposto por Michel Temer. Em entrevista, aluna do 3º período do curso de Pedagogia da Universidade Federal Fluminense (UFF), que não quis se identificar, comentou que o início da ocupação da Faculdade de Educação da universidade se deu após uma grande aula para discutir o que é a PEC e os problemas que ela traz. “A gente teve um aulão sobre a PEC e nesse aulão houve a necessidade de fazer uma assembleia para debater isso”. No mesmo dia houve a realização da assembleia na qual a ocupação da unidade foi aprovada.

 

Aluna do 6° período de Pedagogia conta que na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) o corpo discente já estava realizando internamente alguns debates sobre a PEC 55, a Medida Provisória 746 e o projeto Escola Sem Partido. “Nós fizemos dois dias de mobilização de ocupação com atividades acontecendo no prédio, depois desses dois dias fizemos uma assembleia com duração de quatro horas”, comenta a estudante que concedeu entrevista à ANPEd. Ela ainda relata que nesta assembleia não foi obtido quórum suficiente, com remarcação para a semana seguinte, então realizada em dois turnos de aula. “A partir disso decidimos ocupar paralisando todas as atividades do prédio”. 

Tem sido característico dos movimentos de ocupação aulas públicas, palestras, debates e rodas de conversa para a discussão de diferentes temas, sejam eles vinculados ao curso ocupado em questão, seja sobre o cenário político atual. A participação de professores é fomentada pelos estudantes - em diversas cidades, docentes divulgaram cartas de apoio ao movimento e se colocaram à disposição para contribuir com aula públicas. “Teve bastante aceitação dos professores depois da primeira conversa. Eles estão perguntando o que a gente precisa, como estão as coisas, mandam email pedindo vaga para dar aulão pra gente, sempre preocupados como tá, com nossa segurança”, diz estudante do último período de Pedagogia da UFF.

O diálogo entre ocupantes e professores, ainda que passando por momentos de tensão, tem sido essencial para o fortalecimento da causa e mesmo para a incorporação de algumas atividades que já eram previstas nas universidades. Exemplo disso foi a realização da ANPEd Centro-Oeste 2016, que ocorreu entre os dias 6 e 9 de novembro em contexto de ocupação da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB). A Associação, como contrapartida da liberação pelos alunos de parte da FaE para o evento, ofertou aulas de pesquisadores na ocupação, como a dada pela própria presidente da ANPEd, Andrea Gouveia (UFPR), sobre financiamento em educação e a PEC 55.

 

ARTICULAÇÕES: DENTRO E FORA

As ocupações, em sua maioria, se estruturam internamente a partir de Grupos de Trabalhos (GTs). Dessa forma dividem as tarefas de limpeza, segurança, alimentação, comunicação, planejamento, de acordo com a demanda de cada faculdade, entre os alunos ocupantes. Palestras, encontros, aulas e intervenções artísticas também acontecem regularmente. Na Faculdade de Educação da UFMG, por exemplo, um dia de programação foi composto por: Batucada seguida de uma roda de conversa sobre a MP 746 e a PEC 241; Batalha de MC’s temática; Oficinas: Circo, Stencil, Confecção de materiais para decoração; Exibição do documentário "Acabou a paz. Isso aqui vai virar o Chile"; Conversa após o filme: a trajetória das lutas da educação; Aula de dança e teatro.

Na revista on-line Revista Ensaio, um depoimento expõe a ocupação na Universidade de Brasília (UnB). Com 15 prédios ocupados, organizaram a “Rádio Ocupa UnB: socializando os meios de comunicação” com o objetivo de combater o monopólio da mídia, difundir contra-informação favorável às ocupações e compartilhar experiências entre ocupações. Outra resistência que o movimento procura fazer é evitar a lógica do capitalismo e do patriarcado. “Dentro das ocupações, a divisão das tarefas não atende à lógica capitalista “em que o trabalho intelectual manda no trabalho manual, nem a lógica patriarcal que restringe as mulheres às atividades domésticas e à esfera privada, excluindo-as das atividades públicas. As tarefas devem ser divididas de forma igualitária e rotativas, evitando concentração de poder e criação de desigualdades internas”. 

 

VIOLÊNCIA

Na tentativa de enfraquecer e acabar com o movimento de ocupações, o uso da violência para intimidar os estudantes, tanto efetivo quanto simbólico, tem sido constante. No campus Barreiros do Instituto Federal de Pernambuco, que fica na Mata Sul do estado, por exemplo, no fim do dia da assembléia na qual ficou decidida a ocupação, os alunos foram surpreendidos pela notícia de que “como não estava tendo aula” a alimentação seria cortada, mesmo com 86 estudantes em regime de internato e dependendo da alimentação. Além disso, pouco depois o sinal de internet também caiu e mais à noite ouviu-se o disparo de dois tiros próximo ao local.

No início do mês, em Brasília, o juiz Alex Costa de Oliveira, da Vara da Infância e da Juventude, autorizou que a Polícia Militar utilizasse ‘meios de restrição à habitabilidade’ do Centro de Ensino Ave Branca (CEMAB), escola ocupada localizada em Taguatinga. A decisão autorizou o corte de água, energia, gás, além da proibição da entrada alimentos e de terceiros, inclusive parentes, no local. A pressão sob os estudantes fez com que o imóvel logo fosse desocupado de forma pacífica.

Em Goiás a situação se agrava. Os ocupantes da Escola Superior de Educação Física de Goiás (Esefego) receberam uma alerta da defensoria que dizia que o governador do estado, Marconi Perillo, permitiu que a Polícia Militar utilizasse armas letais e não letais para a desocupação do prédio.

 

 

Em uma manifestação de estudantes secundaristas e universitários que ocupam a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a Polícia Militar também agiu de forma truculenta para tentar reprimir os manifestantes, com uso de bombas de efeito moral e balas de borracha. A violência policial é mais uma demonstração do nível dos ataques contra estudantes, a classe trabalhadora e a população em geral e da forte tentativa de criminalização dos movimentos legítimos de greves e ocupações. As instituições que participam do Fórum de Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas (FCHSSA), incluindo a ANPEd, assinaram um uma nota contra todo e qualquer tipo de violência praticada contra os estudantes secundaristas e universitários que, de forma pacífica e legítima, lutam em defesa da educação pública.

 

 

 

PRESSÕES

Além dessas táticas de desmobilização por parte das direções das instituições e do Estado, existe uma forte resistência de uma outra parcela de estudantes que são contrários às ocupações. Os comumente chamados grupo Desocupa têm se articulado, principalmente pelas redes sociais, com o objetivo de frear o movimento e forçar a desocupação dos prédios. Este grupo, em alguns casos, é liderado por pessoas que não são estudantes universitários, como acontece na UFF.

O Coletivo de Pós-graduandos da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) manifestou a insegurança que acaba atingindo os estudantes das ocupações. “O receio de sanções institucionais e retaliações de grupos contrários é constante. Por isso há o cuidado constante de se preservar a identidade dos estudantes e não individualizar nunca os atos da ocupação. Todas as deliberações e propostas de encaminhamento são tiradas via assembleia, da forma mais horizontal possível, com o objetivo de resguardar e não personalizar as ações em indivíduos”, relata.

Houve uma pressão ainda maior sobre os estudantes quando o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), programado para ser realizado em várias unidades ocupadas, se aproximava. Naquele momento, 304 escolas que seriam local de prova para o ENEM estavam ocupadas. Medidas arbitrárias com o claro intuito de prejudicar o movimento foram tomadas pelo Ministério da Educação. Apesar dos estudantes terem se colocado abertos ao diálogo sobre a realização das provas nos prédio ocupados, 191.494 alunos tiveram seu exames adiados. Além disso, estudantes do grupo Desocupa aproveitaram a situação para pressionar ainda mais as ocupações.

 

APRENDIZAGEM

“Ocupar Educa, com certeza.” Essa é a resposta de uma aluna do 8º período de Pedagogia da UFF, quando questionada sobre o cotidiano desses movimentos. Desde os secundaristas até as ocupações das universidades, os alunos comentam sobre os diversos aprendizados proporcionados.

Esse “educar” abrange diferentes esferas, seja na convivência com o outro, no momento da divisão das tarefas ou na responsabilidade de organizar alimentação e segurança para os colegas. Pensar o planejamento e remanejamento das salas de aula para as futuras reuniões, palestras e assembleias, tudo exige tomadas de decisões desses jovens, gera experiência e traz lições que marcam todos. Para a aluna do 2º período de Pedagogia da Universidade Federal de Goiás (UFG), o processo de conhecer o outro e a si mesmo foi muito importante. “Se fosse três semanas atrás eu não conseguiria estar falando, porque eu era muito tímida.”

Os estudantes da UFF organizam reuniões todas as noites, nas quais são debatidos textos, autores e as questões que estão na pauta de reivindicação, principalmente a PEC 55. “Não é um tipo de ato que está pronto, a gente está construindo junto e para isso a gente precisa estudar, precisa conversar” relata a aluna do 8º período. Ela pontua também que esse diálogo diário entre os colegas contribui para sua formação como professora, em que também é necessário aprender a ouvir os outros. 

A aluna do segundo período de Pedagogia da UFG também sinaliza que a ocupação foi um espaço crucial no fomento de reflexões e debates que são urgentes. “Se não tivesse havido ocupação não teríamos tido tempo para parar discutir sobre coisas que estão nos afetando. Não é apenas a PEC, que vai nos afetar, mas coisas que já estão nos afetando também”. Para ela, neste contexto é necessário que a visão do que é e pra que serve a universidade seja ampliada. “É preciso esse momento de parar e dizer: esse espaço não é só pra isso, não é só pra atividade acadêmica… Vamos conversar, vamos dialogar”.

Assim como fizeram outras universidades, a UFG manteve suas portas abertas para os estudantes secundaristas, que puderam utilizar o espaço para se reunirem. Esse diálogo entre estudantes universitários e secundaristas é importante, em um momento que a resistência que se forma nas universidades é reflexo das ocupações iniciadas, desde o ano passado, pelos estudantes do ensino médio.

Na primeira assembleia geral dos estudantes da UFF, os secundaristas estavam presentes. A aluna do segundo período de Pedagogia afirma: “Na verdade eu acho que a gente aprendeu com os estudantes secundaristas. A gente perdeu isso há muito tempo. O movimento estudantil universitário perdeu esse gás há muito tempo e o movimento estudantil secundarista veio mostrar para a gente que é possível. A gente tá seguindo a rebarba do movimento secundarista. E ainda bem né? Porque a gente tá aqui pra aprender com eles!”

Logo após o pedido de reintegração de posse do prédio da Faculdade de Educação da UFG, e a consequente desocupação, a estudante do segundo período de Pedagogia conta que os(as) estudantes do seu curso, junto aos de Psicologia, se reuniram em conjunto com os professores para refletir sobre o movimento que se encerrava - pelo menos naquele momento - e quais caminhos seguir. “Quando desocupou eles - os professores - propuseram uma atividade, em dois dias, no auditório da faculdade, pra gente poder discutir qual foi o sentido da ocupação e o que nós vamos fazer a partir de agora”, declara.

O professor da UFF e Primeiro Secretário da ANPEd, Paulo Carrano enfatiza os impactos que as ocupações provocam. Para ele, apesar de serem transitórias, elas influenciam tanto os sujeitos envolvidos no movimento quanto a vida institucional de escolas e universidades - atingindo, assim, até mesmo quem não esteve diretamente envolvido. “As ocupações alteram as dinâmicas de tempo e espaço da escola, num processo de reconstrução da instituição que pode ser profundamente educativo. Elas representam uma oportunidade para a instituição se repensar, mas a tendência não é essa; é voltar ao ponto de inércia. As instituições educacionais poderiam se permitir mais imaginação e assim aprender com os impulsos de mudança de seus estudantes”, reflete Carrano.  

 

*Supervisão de Estágio: Paulo Carrano e João Marcos Veiga

 

                                                                                                                                                                                          Galeria de Fotos

                                                          
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