As crianças em tempos de crise | GT 07 (Educação de Crianças de 0 a 6 anos)

Gizele de Souza - UFPR

Lívia Maria Fraga Vieira - UFMG

Patricia Corsino – UFRJ

Rosânia Campos – UNIVILLE

*Integrantes GT 7 da ANPEd (Educação de Crianças de 0 a 6 anos)
 

As guerras, as revoluções, as epidemias acarretam sofrimento: o historiador sente-se mais à vontade falando das primeiras que deste último. Além do mais, que ligação exata tecer com ele, que não seja nem de indiferença, nem de miserabilismo, nem de denegação, nem de voyeurismo? (FARGE, 2011, p.13)

Estas perguntas feitas por Arlette Farge, historiadora francesa, sobre o nosso posicionamento frente ao sofrimento, nos embala a questionar e a incluir as crianças nestes processos de crises que a humanidade atravessou e que, na atualidade, atravessa com a pandemia do COVID-19, que acirram as desigualdades e a violência e promovem ataques à ciência e aos direitos sociais. As crianças não só estão em meio a isso, mas estão atentas e preocupadas com a situação social, nas quais suas famílias e amigos enfrentam e tentam sobreviver. 

Muitas destas crises abarcam continentes e países dos mais prevenidos aos menos preparados economicamente, todavia, ajustamos nossa lente para o Brasil e para os desafios atuais que temos enfrentado nos últimos tempos, em especial, na relação entre crianças pequenas, Educação infantil e os recentes posicionamentos governamentais. 

Um das características que se pode destacar em meio a esta crise mundial e brasileira é o negacionismo. Lilia Schwarcz em entrevista recente a Universa/UOL, afirma que tal perspectiva não é relativa aos dias atuais e que o problema imbricado nisso é que o “negacionismo nega a história também” (SCHWARZ, 2020). É de longa duração a desqualificação à ciência, às vacinas, aos cientistas, às instituições públicas e a derivação que podemos dar em tempos de distopia brasileira, é também a negação da contribuição das universidades públicas (responsáveis por mais de 95% da pesquisa científica no Brasil), das produções e propostas construídas pelo campo da educação e da Educação Infantil e dos direitos conquistados pelas crianças e suas famílias à uma educação que as respeite como sujeitos histórico-sociais. 

Além dos reiterados ataques à oferta pública de Educação Infantil, à escola pública, ataques que se manifestam claramente na proposta dos Ministérios da Economia e da Educação, sendo ministros os senhores Paulo Guedes e Abraham Weintraub, de “uma nova política educacional” privatizante com a distribuição de vouchers para creches,  temos sido assolados pela divulgação de propostas para a área da infância e da Educação Infantil, advindas do governo federal, que afronta pesquisas, conquistas legais e tratados internacionais dos quais o país é signatário. Nesse sentido, as propostas atuais do governo federal não apenas rompem com consensos da área, como também recolocam a Educação Infantil na perspectiva de uma estratégia de assistência às famílias, como se pode observar no frágil Programa “Criança Feliz”. Esse movimento governamental secundariza, dessa forma, a histórica luta pela inclusão da Educação Infantil como primeira etapa da Educação Básica, com função, com organização e com objetivos próprios. Esse descaso do governo federal com os estudos, as pesquisas e as lutas pela educação das crianças é evidenciando ainda na atual Política Nacional de Alfabetização- PNA e no programa “Tempo de aprender: ações de apoio a alfabetização com base em evidências científicas” (MEC, 2020). 

Não obstante, interessante observar que, o mesmo governo que ataca as universidades e centros de pesquisas afirmando que esses fazem apenas “balbúrdia”, cortando financiamentos, ratifica sua política com ênfase no chavão: “evidência científica”. A justificativa de que o programa se baseia no “estado da arte em alfabetização”, ao focalizar prioritariamente pesquisas do campo das ciências da cognição, exclui o amplo arcabouço de pesquisas nacionais. Além do reducionismo, desqualifica as pesquisas desenvolvidas no Brasil e a pluralidade de enfoques científicos, que lhe é pertinente.  

Embora o campo de estudos sobre a alfabetização no Brasil seja vasto e consistente, o Programa “Tempo de Aprender” ao apresentar na sua justificativa o que considera as “principais causas das deficiências da alfabetização no Brasil”  não busca recursos e não se baseia em resultados de pesquisas, nem mesmo nos estudos desenvolvidos pelo INEP-MEC. Evidencia-se ser uma proposta baseada em impressões parciais e restritas, que parte do “déficit da formação pedagógica e gerencial  de docentes e gestores” e de “materiais estruturados” para impor uma visão míope do processo, incorporando a pré-escola como antecipação de um ensino “focalizado em evidências científicas” reduzido e inadequado não apenas para as crianças de 4 e 5 anos de idade, como também para aquelas dos anos iniciais do Ensino Fundamental. 

Para além desse aspecto, a proposta de uma política de alfabetização que considera a pré-escola como etapa preparatória para o ensino fundamental implica não apenas em um retrocesso, mas também infringe as próprias Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil (CNE/CEB, Resolução no 5, 17/12/ 2009), documento mandatório formulado a partir de pesquisas, debates nacionais e internacionais realizadas tanto na área de educação como em outros áreas, como psicologia, sociologia, entre outras. Desse modo, é possível dizer que os programas e políticas efetivadas pelo atual governo federal não implicam apenas em deslocamentos conceituais, antes implicam em uma ruptura e em uma inflexão em relação às concepções de crianças, de desenvolvimento humano, de papel da Educação Infantil e função do professor/a que orientaram a primeira etapa da Educação Básica nas últimas décadas. Crianças como sujeitos de direitos, como atores sociais e construtores de cultura. 

Sem o propósito de examinar detalhadamente as proposituras do governo federal para a educação, o objetivo dessas reflexões é destacar que o que vivemos atualmente é mais do que a negação da ciência, é também a negação de direitos duramente conquistados, de modo especial, os direitos das crianças e de suas famílias a uma Educação Infantil de qualidade. É já de conhecimento público o quanto o empobrecimento social, cada vez mais galopante no Brasil, acirra as desigualdades sociais e coloca as crianças em uma situação de vulnerabilidade alarmante. 

Segundo os dados da PNAD Contínua/IBGE de 2018, estima-se a população de 15 milhões e 522 mil crianças de 0 a 5 anos de idade, (10 milhões e 172 mil de 0 a 3 anos e 5 milhões e 350 mil de 4 e 5 anos). Estudo Suplementar da PNAD/2015 intitulado “Aspectos dos cuidados das crianças de menos de 4 anos de idade” identificou a presença de crianças dessas idades em 13,7% dos domicílios do País.Os resultados mostraram que 84,4% (8,7 milhões) dessas crianças permaneciam, de segunda a sexta-feira, no mesmo local e com a mesma pessoa e que quanto mais nova a criança, tanto maior era o percentual de permanência no mesmo lugar e com a mesma pessoa ao longo do dia. Esse padrão ocorreu em todas as Grandes Regiões. Somente 1,4 milhão de crianças pequenas (16,6%) permanecia sob os cuidados oferecidos em creche ou escola no período da manhã e da tarde. Evidenciou que a permanência da criança no domicílio em que residia mostrava tendência de redução com o aumento da idade: de 91,8% (menos de 1 ano) para 60,7% (3 anos de idade).A pesquisa ainda mostrou a concentração de crianças menores de 4 anos de idade em domicílios com rendimentos per-capita variando de nenhum rendimento a menos que um salário mínimo. Estes concentraram 73,9% das crianças nessa idade. 

Essas informações são preocupantes no contexto da pandemia, confrontados com os dados levantados pelo estudo realizado por pesquisadores do Cedeplar/UFMG e divulgados na “Nota técnica – desafios e propostas para enfrentamento da Covid-19 nas periferias urbanas: análise das condições habitacionais e sanitárias dos domicílios urbanos no Brasil e na Região Metropolitana de Belo Horizonte” (TONUCCI et alii, 2020). Estudo que mostrou que o Brasil tem quase 2 milhões de domicílios com coabitação familiar; mais de um 1 milhão com adensamento excessivo; quase 4 milhões sem abastecimento regular de água; quase 7 milhões sem coleta regular e esgoto; e mais de 3 milhões com ônus excessivo com aluguel urbano. O estudo alerta ainda que mesmo sendo baseado em dados de cinco anos atrás, “não há elementos que justifiquem uma melhoria no quadro geral se considerarmos a crise econômica instaurada neste período e a brusca redução de investimentos públicos em áreas como saneamento e moradia”.

Essas situações de moradia e de saneamento básico nos colocam em alerta para a gravidade das condições de vida das crianças pequenas e dos bebês confinadas em domicílios com baixos rendimentos, no quadro atual da pandemia e das desigualdades sociais históricas que intensificam as vulnerabilidades.      

Esta composição de crise humanitária, sanitária, econômica-social e política suscita, ao nosso juízo, uma preocupação com a invisibilidade das crianças e das experiências de suas infâncias. E, no caso da Educação Infantil, a invisibilidade que o atual governo confere à creche (educação de 0 a 3 anos) e o lugar de etapa preparatória designada à pré-escola, compõe novos desafios em tempos de pandemia do COVID-19, no qual as crianças pequenas estão sendo incluídas nas atividades remotas, nomeadas inadequadamente de Educação a Distância-EAD. Municípios e instituições públicas e privadas estão preocupados com a ausência de atividades escolares neste período de quarentena e têm feito propostas diversas que incluem a primeira etapa da Educação Básica. Vale destacar que não se faz Educação Infantil no espaço doméstico, pois esta etapa educacional é fundamentalmente lugar de convivência entre crianças e adultos em um espaço público onde interações e brincadeiras são os eixos do trabalho pedagógico. A didática específica da Educação Infantil, legitimada pelos documentos oficiais, não é compatível com a modalidade EAD e nem mesmo com tarefas remotas, apostilas ou similares que apresentam conteúdos descontextualizados e pouco significativos para as crianças e que têm servido para reiterar a ideia de produtividade.

Como desfecho desta reflexão, nos parece que para enfrentar a indiferença, o miserabilismo, a denegação e o voyerismo diante do sofrimento humano não devemos situar a criança como problema social - discurso que cotidianamente temos acompanhado pela mídia e por alguns estabelecimentos educacionais – mas diferentemente assumirmos que as crianças são parte dos caminhos de entendimento, resolução, criação e crítica. E elas assim o fazem, basta prestarmos atenção para os seus olhos, movimentos, falas e posicionamentos. O façamos, no espaço doméstico e na vida pública, pois as crianças, como sujeitos da história, podem nos ajudar a entender e acolher nossos medos, angústias e ações.       

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDIFES. Universidades públicas realizam mais de 95% da Ciência no Brasil. Brasília: Andifes, 11 de abril de 2020. http://www.andifes.org.br/universidades-publicas-realizam-mais-de-95-da-ciencia-no-brasil/

CNE/CEB. Resolução no 5, de 17/12/2009 que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil

CNE/CP. Resolução no 2, de 22/12/2017, que institui a Base Nacional Comum Curricular.

Entrevista com Lilia Schwarcz. 100 dias que mudaram o mundo. São Paulo: UNIVERSA/UOL, 9 de abril de 2020. 

IBGE. Aspectos dos cuidados das crianças de menos de 4 anos de idade, 2015.  Coordenação de Trabalho e Rendimento, Rio de Janeiro : IBGE, 2017.

FARGE, Arlette. Lugares para a História. Tradução: Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2011 (Coleção História e Historiografia).  

MEC, Plano Nacional de Alfabetização- Programa Tempo de Aprender. http://alfabetizacao.mec.gov.br/tempo-de-aprender

MINISTÉRIO DA CIDADANIA. Programa Criança Feliz. http://mds.gov.br/assuntos/crianca-feliz/crianca-feliz/conheca-o-programa

TONUCCI FILHO, João B. M.; PATRÍCIO, Pedro Araújo; BASTOS, Camila. NOTA TÉCNICA – DESAFIOS E PROPOSTAS PARA ENFRENTAMENTO DA COVID-19 NAS PERIFERIAS URBANAS: análise das condições habitacionais e sanitárias dos domicílios urbanos no Brasil e na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Disponível em:https://www.cedeplar.ufmg.br/noticias/1229-nota-tecnica-desafios-e-propo... Acesso em: 08/04/2020