Creches Universitárias | Relato de Bianca Cristina (USP) e Débora Piotto (USP)

CRECHES DA USP: 30 ANOS DE EDUCAÇÃO INFANTIL, ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO EM RISCO!

Bianca Correa e Débora Piotto

 Este depoimento integra reportagem especial da ANPEd sobre a Educação Infantil.

A Universidade de São Paulo - USP - possui seis creches, sendo três na capital, uma em Ribeirão Preto, uma em São Carlos e uma em Piracicaba. As cinco primeiras são administradas pela Superintendência de Assistência Social da USP. Dentre elas, a mais antiga, conhecida como Creche Central, localiza-se no campus do Butantã e foi criada em 1982. A de Ribeirão Preto, Carochinha, foi aberta em 1985.

Até 2015, as unidades que possuíam mais de 90 crianças matriculadas contavam com pedagogo e psicólogo, além de técnico administrativo, auxiliar de enfermagem, técnico de nutrição e dietética, cozinheiros, lactaristas, auxiliares de cozinha, auxiliares de serviços gerais, auxiliares de manutenção, zeladores. Como se percebe, um módulo bastante completo de funcionários para garantir uma educação de qualidade.

Apesar desse quadro, a USP seguia, até aquele ano, contratando “técnicos de apoio educativo” para atuar como professores em todas as suas creches, ou seja, ao arrepio da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, promulgada em 1996. Como fruto da luta das trabalhadoras e trabalhadores das creches, em 2013 a lei estadual nº 1.202 foi aprovada. Assim, os “técnicos de apoio educativo” que tivessem a habilitação necessária conforme a LDB, passariam à categoria de “Professor de Educação Infantil - PROFEI/USP” (Lei nº 1.202, de 24 de junho de 2013). Embora aprovada em 2013, até o presente momento nenhuma mudança efetiva ocorreu para regularizar essa situação.

Até 2014 as creches aceitavam a matrícula de crianças filhas de servidores (distinguindo-se docentes de funcionários técnico-administrativos) e de discentes (de graduação e pós-graduação). Sendo a demanda maior do que o número de vagas, a seleção era feita a partir de critérios socioeconômicos em todas as categorias.

Todavia, no início de 2015, sem nenhuma justificativa ou aviso prévio, as creches foram comunicadas pela SAS que não seriam realizadas novas matrículas nas creches. Houve muitas reações por parte de toda a comunidade universitária, bem como processos judiciais buscando garantir o ingresso das crianças. Mas, de fato, naquele ano, assim como em 2016, ingressaram apenas algumas crianças cujas famílias ganharam processos na justiça e as que já tinham irmãos frequentando as creches. Neste último caso, a regra só valeu para crianças filhas de servidores, excluindo-se do benefício os filhos de estudantes.

Em 2015, a USP colocou em prática um Programa de Incentivo à Demissão Voluntária (PIDV) que acarretou na perda de profissionais que atuavam nas creches. E, embora a própria Universidade tenha induzido a saída dos profissionais, passou a alegar este fato como justificativa para não matricular novas crianças em suas creches.

Ao final de 2016 a situação segue a mesma, ou seja, não há, até o momento, perspectiva de entrada de novas crianças em nenhuma das cinco creches uspianas. Desse modo, embora não haja nenhuma manifestação oficial por parte dos altos escalões da Universidade, tanto assim que na página oficial da SAS as creches continuam constando como benefício para todos os servidores, o que se constata é que o fechamento das creches é iminente. Sem o ingresso de novas crianças, o encerramento das atividades, tão logo as que atualmente estão matriculadas completem seis anos, é inexorável.

Em reuniões e debates públicos, quando a importância das creches tem sido colocada em questão, membros da administração universitária alegam que elas não se caracterizam como atividade-fim da Universidade. Mas, como sustentar tal alegação diante dos dados e dos números é algo quase impossível. Novamente recorremos à própria página da SAS na qual se lê “A Divisão de Creches tem, como um de seus objetivos, também oferecer campos de estágios e pesquisa, recebendo estudantes, mestrandos, doutorandos, que vêm conhecer o trabalho realizado nas creches, buscar informações e realizar coletas de dados para seus trabalhos.” E, ainda: “Além disso, as creches recebem muitos profissionais, a maioria da área da educação, que vêm para visitas monitoradas e para conhecer o que as creches pensam e fazem.” (http://www.usp.br/coseas/COSEASHP/COSEAS2010_DC.html

E, de fato, as creches da USP têm cumprido esta função. As creches/pré-escolas tem acumulado, ao longo dos anos de sua existência, uma extensa produção acadêmico-científica. No que tange à pesquisa, por exemplo, levantamento realizado apenas para o período de 2009 a 2014 mostra que as creches uspianas participaram ou contribuíram, sendo campo de pesquisa, para a realização de 99 teses de doutorado, dissertações de mestrado ou iniciações científicas (COMISSÃO, 2015). Além disso, os profissionais das creches foram, eles próprios, autores de 182 trabalhos apresentados em eventos acadêmico-científicos. No que se refere à contribuição para o ensino, as cinco creches da USP receberam, entre 2009 e 2014, 681 estagiários dos mais diversos cursos, como Pedagogia, Educação Física, Psicologia, Enfermagem, Terapia Ocupacional, Nutrição, Odontologia, Fonoaudiologia, Música, ajudando, em parceria com as unidades de ensino, também a formar futuros profissionais de diferentes áreas. E, em relação à extensão, também em apenas cinco anos (2009-2014), as creches uspianas, que mantêm um programa semanal de visitação externa, receberam mais de 6.600 pessoas vindas de todo o Brasil e do exterior (COMISSÃO, 2015).

No caso específico da Creche/pré-escola Carochinha, com a qual temos maior proximidade por atuarmos no curso de Pedagogia do campus de Ribeirão Preto, desde sua criação em 1985, esta unidade de educação infantil recebeu a visita de 9.657 pessoas de 545 instituições de diferentes lugares do Brasil (TELES, 2015). Além disso, a Creche já recebeu a visita de pesquisadores internacionais provenientes de diversos países como Itália, Inglaterra, Estados Unidos, Finlândia, entre outros, interessados em conhecer o trabalho lá realizado. Tamanho interesse da comunidade científica e educacional expressa a repercussão da qualidade e inovação da proposta pedagógica desenvolvida pelas creches uspianas.

A qualidade e o reconhecimento do trabalho educacional realizado nas creches também se reflete na participação da Creche Carochinha na formulação de documentos nacionais na área de educação infantil. A equipe da Carochinha ajudou a elaborar diversos documentos orientadores e parâmetros de qualidade para a Educação Infantil brasileira, além de ajudar a consolidar outras redes de ensino na área. Seus profissionais contribuíram, por exemplo, para a formulação dos documentos do Ministério da Educação “Critérios para um atendimento em creches que respeite os direitos fundamentais das crianças” (BRASIL, 1997) e “Indicadores de Qualidade na Educação Infantil” (BRASIL, 2009).  Nestes documentos oficiais, utilizados grandemente nas redes educacionais, podem ser encontradas diversas fotos de espaços e situações educativas da Creche Carochinhas.

Além disso, os professores e a equipe técnica multi-profissional da creche Carochinha participaram ativamente de uma publicação da área da educação infantil que possui grande repercussão – o livro “Os Fazeres na Educação Infantil” (ROSSETTI-FERREIRA et al., 2009) –, que se encontra na 12ª edição. Participaram, ainda, da publicação de outro livro na área da educação infantil: “O Dia-a-dia nas Creches e Pré-Escolas: Crônicas Brasileiras” (MELLO et al., 2010) e de vários artigos em diferentes revistas de educação infantil, como Pátio (Penso Editora Grupo A), Pátio Educação Infantil (Penso Editora Grupo A), Nova Escola (Editora Abril), Criança (MEC) e Guia Prático de Professores da Educação Infantil (Ed. Lua) (TELES, 2015). 

Em parceria com o Centro de Investigações sobre Desenvolvimento Humano e Educação Infantil (CINDEDI) – centro de pesquisa internacionalmente reconhecido por seus estudos na área da educação infantil – a creche Carochinha também participou ativamente da elaboração e filmagem de uma série de vídeos sobre diversas temáticas, como, por exemplo, sono, alimentação, adaptação, contação de histórias, interação de bebês (Bebê interage com bebê? de Amorim, Anjos e Rossetti-Ferreira, 2007), dentre outras. Todos os vídeos têm sido distribuídos gratuitamente e estão liberados no Youtube, no canal CINDEDI, e têm como objetivo auxiliar na formação em serviço de professores de educação infantil.  

Finalmente, é preciso destacar que, embora a administração da USP alegue que a creche não é atividade-fim e que seu custo é elevado, daí a necessidade de sua extinção a fim, sobretudo, de cortar gastos, a economia que um eventual fechamento das creches teria seria de 0,03% no orçamento universitário. Além disso, a Universidade vem gastando ainda mais nos últimos dois anos, já que há vagas ociosas e para os servidores, conforme determina a lei, ela segue pagando o “auxílio-creche”, no valor de “R$ 596,96 por dependente, para  funcionários celetistas em jornada superior a 30 horas semanais, funcionários autárquicos em jornada Completa e para docentes em RDIDP” e “R$ 298,48 por dependente, para funcionários celetistas em jornada igual ou inferior a 30 horas semanais, funcionários autárquicos em jornada Parcial ou Comum e, a partir de 01/03/2010, para os docentes em RTP e RTC.” (http://www.usp.br/drh/novo/beneficios/aux_creche.html)

Segundo dados levantados por Bárbara Toaliar, Christina Queiroz, Cíntia C. Vequi-Suplicy, Isabelle C. Somma de Castro, Margarita Zimmerman (2016), operando em 2016 com quase metade das vagas ociosas nas cinco creches, a USP gastará até este ano R$ 1.269.707,60 com o pagamento de auxílio-creche a famílias cujos filhos poderiam estar sendo atendidos em uma de suas unidades de educação infantil. Assim, a

economia obtida com redução do custeio referente à manutenção das creches da USP é insignificante frente aos gastos que a Universidade continuaria tendo com a folha de pagamento e a ampliação do auxílio-creche (TOALIAR; QUEIROZ; VEQUI-SUPLICY; CASTRO; ZIMMERMAN, 2016).  

Além da gravidade desta questão do ponto de vista da administração pública, os dados apresentados referentes às atividades de ensino, pesquisa e extensão realizadas pelas creches da USP mostram que elas representam muito mais do que o cumprimento de um direito legal, constituindo sim uma atividade-fim da universidade. Além disso, elas são a concretização de uma concepção de educação e de organização do trabalho pedagógico que respeita, genuína e profundamente, as crianças. Suas propostas pedagógicas e seus profissionais contribuem para a formulação de políticas públicas na área de educação e suas experiências constituem referências para muitos sistemas educacionais. O conhecimento produzido nas e a partir das experiências das creches da USP constituem um patrimônio da educação infantil. Patrimônio que se encontra em risco e que nos cumpre defender.

 

REFERÊNCIAS

AMORIM, Kátia S.; ANJOS, Adriana M.; ROSSETTI-FERREIRA, Maria Clotilde
Bebê interage com bebê? DVD, Pseudo Video produtora, 2007.
AMORIN, Kátia. Contribuições da Creche para a pesquisa: a parceria CINDEDI
Carochinha. In: PIOTTO, Débora C.; MARTINS, Letícia A.; CORREA, Bianca C. (orgs). Histórias da Carochinha: contribuições para o ensino, a pesquisa e a extensão de uma creche universitária. São Carlos: Pedro & João editores, 2015.
BRASIL. Lei nº. 9.394 de 20/12/1996. Estabelece as diretrizes e bases da Educação Nacional (LDB). Brasília, DF, 1996.
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Critérios para um atendimento em creches que respeite os direitos fundamentais das crianças. Brasília: MEC/SEF/DPE/Coedi, 1997.
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Indicadores da Qualidade na Educação Infantil. Brasília: MEC/SEB, 2009.
CARVALHO, Ana M. A; PEDROSA, Maria I.; ROSSETTI-FERREIRA, Maria Clotilde. Aprendendo com crianças de 0 a 6 anos. São Paulo: Cortez, 2012.
CINDEDI USP. Disponível em: https://www.youtube.com/channel/UCkwxMqF6q5yGiVsXvd-cEVg. Acesso em: 30 nov. 2015.
COMISSÃO DE MOBILIZAÇÃO DE PAIS E FUNCIONÁRIOS DAS CRECHES DA USP. Dossiê Em defesa das creches/pré-escolas da Universidade de São Paulo. Abril, 2015. (https://crechecentraluspcom.wordpress.com/2015/04/dossie12.pdf). Acesso em março/2016.
MELLO, Ana Maria et al. (orgs). O dia a dia das creches e pré-escolas: crônicas brasileiras. Porto Alegre: ArtMed Editora, 2010.
ROSSETTI-FERREIRA, Maria Clotilde et al. (orgs). Os fazeres na educação infantil. 12ª ed. São Paulo: Editora Cortez, 2009.
TELES, Regina. A Creche Carochinha, o ensino, a pesquisa e a extensão. In: PIOTTO, Débora C.; MARTINS, Letícia A.; CORREA, Bianca C. (orgs). Histórias da Carochinha: contribuições para o ensino, a pesquisa e a extensão de uma creche universitária. São Carlos: Pedro & João editores, 2015.
TOLIAR, Bárbara; Christina Queiroz, Cíntia C. VequiSuplicy, Isabelle C. Somma de Castro, Margarita Zimmerman. USP terá USP terá prejuízos ao fechar vagas no Programa de Educação Infantil. Disponível em: https://crechecentraluspcom.wordpress.com/2016/05. Acesso em: 13/07/2016).